O texto abaixo é parte do livro Recipes for Disaster publicado pela Crimethinc, que em formato de “um livro de receitas”, traz sugestões e ideias sobre como fazer as mais diversas coisas – desde um grafite, até formar um coletivo ou organizar uma manifestação anti-fascista. Um dos tópicos, que está aqui publicado, fala sobre como podemos apoiar sobreviventes de violência machista. Este texto trás ideias diversas sobre formas de apoio e solidariedade à sobreviventes, muito embora seja voltado pra alguns tipos de situação específicas, e obviamente não dá conta de toda a complexidade que situações de agressão machista podem ter em cada realidade. Mas o interessante aqui é partir de nosso contexto específico enquanto comunidade envolvida em movimentos sociais/anarquistas, e voltar as reflexões para essa questão, afinal em muitos casos, a preocupação com a sobrevivente permanece sendo a última das prioridades.
Em geral. é comum que denúncias contra agressores machistas sejam alvo de questionamentos sem fim; mulheres que denunciam são costumeiramente desqualificadas com inúmeras críticas que nada tem a ver com a agressão ou, por outro lado, com críticas sobre como ela deveria ter agido – que vão sempre no sentido de tirar a credibilidade da denúncia e de quem a faz; sobreviventes acabam se afastando dos espaços de militância para que não tenham que conviver com a presença de seus agressores, que seguem nos mesmos como se tudo estivesse bem; dentre outros problemas. Em comum, o que se percebe é que ainda há pouco acolhimento e apoio às sobreviventes, o que acaba por gerar uma atmosfera de distanciamento.
Muitas vezes a questão sobre “o que fazer com o agressor” acaba sendo um dos assuntos mais relembrados em conversas sobre as recorrentes agressões machistas. Quanto a isso, existem diversas experiências mundo afora de processos de responsabilização de agressores. Em muitos casos, a solução coletiva foi o ostracismo, em outros, buscou-se meios distintos de lidar com a questão partindo de propostas que seguem para rumos diversos a partir da intervenção da comunidade. Porém antes de pensar nessas possibilidades, e se elas podem funcionar ou não na prática, o primeiro ponto continua sendo o apoio imediato à sobrevivente, e também em todo o processo posterior que ela passará depois que sofre uma agressão machista.
Conversar, oferecer apoio (em todas as suas formas e possibilidades), entender suas necessidades, vontades e opiniões naquele momento. O desejo principal a ser levado em consideração aqui deve ser sempre o da sobrevivente: impor a ela o que deve ser feito em um momento tão delicado é algo extremamente agressivo. Se a vontade dela é fazer uma denúncia pública, procurar formas de levar isso adiante com um grupo de apoio maior pode ser uma forma de ação; entretanto, se naquele momento ela não deseja se expor (e isto pode ter milhares de justificativas), isso precisa ser respeitado, e outras formas de ação podem ser pensadas. As alternativas de ação podem ser diversas.
Pode ser preciso um processo longo para que se consiga seguir adiante ou mesmo compreender o que foi passar por uma agressão machista, e isso às vezes leva anos. Sendo assim, é primordial respeitar os tempos e processos de cada uma e procurar apoiar essa compreensão, e também entender esses processos: romper com o ciclo de violência em que se está inserida não é algo fácil, e nesse contexto, há que se tomar cuidado para não pressionar uma sobrevivente a fazer algo que não quer ou não está preparada, ou mesmo virar as costas a ela acusando-a de uma suposta conivência ou submissão com relação ao agressor – tomar atitudes neste sentido é fechar os olhos para toda a complexidade que a violência machista tem.
Apoio à sobrevivente, diálogo e respeito com seus desejos são os princípios básicos para se iniciar qualquer ação nesse sentido. Segue o texto!
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Apoiando Sobreviventes de Violência Doméstica*
* Obs: embora o texto se refira sobretudo à problemas de violência machista em ambiente doméstico, usando o termo “Violência Doméstica” para tratar do assunto, é importante lembrar que a Violência Machista atinge mulheres não só em suas casas, mas nas ruas, no ambiente de trabalho, escolas e faculdades, espaços de militância política, ou seja, em todos os lugares: não é o lugar que determina a violência, e sim a lógica do machismo em nossa sociedade.
Por Crimethinc, publicado originalmente em Recipes For Disaster – An Anarchist Cookbook
Mulheres vivem em uma zona de combate “domesticada”. Em um dia qualquer nos Estados Unidos, em média 480 mulheres serão estupradas, 5.760 mulheres serão agredidas e quatro serão assassinadas por um parceiro masculino. A violência doméstica é uma agressão aos corpos e às mentes das mulheres, feita por aqueles que reivindicam amá-las e amam reivindicá-las. O sucesso dessa violência depende da cumplicidade da comunidade. Se pretendemos trazer uma libertação verdadeira, devemos adotar explicitamente um comportamento anti-autoritário tanto na vida pessoal quanto na política. Nenhuma hierarquia é aceitável e nenhuma dominação é justificável — nem mesmo “entre quatro paredes”. Como uma em quatro mulheres será agredida (geralmente incluindo alguém que você ama), devemos promover guerra à violência doméstica. Nós contribuímos para empoderar nossas comunidades lutando contra a violência e hierarquia o mais perto de casa… ou em casa.
Ingredientes
- Materiais de divulgação;
- Refúgios;
- Creches;
- Materiais de segurança básica — spray de pimenta, apitos, cadeados, telefone;
- Conhecimento de recursos locais;
- Uma rede de comunidades seguras / espaços para mulheres;
- Dedicação pessoal à completa aniquilação de autoridade.
Estágio um: Ajudando-a
Eduque-se. A violência doméstica (VD) raramente é um exemplo isolado de agressão, mas sim um padrão de poder e controle. Ela pode envolver violência sexual ou física, ou ser uma complexa rede de ameaças, destruição de propriedade, isolamento e abuso emocional, financeiro e psicológico. Entender isso vai ajudar você a reconhecer abusos caso eles apareçam sem machucados físicos.
Se você está realmente prontx para que sua mãe, amiga ou filha lhe conte o que está acontecendo em sua vida privada, convide-a a procurar você. Se você estiver falando contra violência e estupro, ela saberá que você está prontx para isso. Espalhe pela vizinhança pôsteres sobre violência doméstica, faça feiras de rua contra violência em vizinhanças residenciais, pendure cartazes em infoshops e casas coletivas para convidar mulheres a um espaço seguro. Se ela, xs filhxs ou seus animais estão em perigo imediato, entretanto, você pode precisar abordá-la. Nunca aborde o agressor: a maioria dos agressores são paranóicos e rapidamente presumirão que suas vítimas os expuseram, e podem fazer represálias contra elas.
Siga a vontade dela. A coisa mais importante que você fará é estar lá para ela, mesmo se você se sentir inútil. Tentar ser heróicx poderá apenas minar a autonomia dela. Deixe que ela tome suas próprias decisões, mesmo que as considere ruins, e nunca diga a ela o que fazer. Dê retaguarda para ela: recuse dominá-la e recriar o abuso.
Dê a ela um número de telefone ou um modo para que possa contatar você ou alguém na comunidade. O melhor é um celular que sempre esteja ligado, ou um número de alguma casa coletiva onde alguém esteja geralmente acordadx.
Deixe-a falar. Não estremeça ou se sobressalte: histórias de sodomia e estrangulamento não são fáceis de se ouvir, mas são ainda mais difíceis de se contar. Sobreviventes frequentemente se aterrorizam em contaminar o mundo de outro alguém com seus traumas ou de não acreditarem nelas. Diga que você acredita nela. Você será transformadx pelo que ouvir; agradeça a ela por isso. Confirme o que pode parecer óbvio. Um agressor gasta muito tempo dizendo a ela que está louca, e que ninguém acreditaria nela. Diga a ela que você está ouvindo, e ofereça contato visual e proximidade física se ela estiver confortável com isso. Garanta a ela que o jeito como se sente está certo. Não há um jeito “normal” para responder a atos anormais de violência. Entenda que o escudo de invulnerabilidade foi destruído (41% das vítimas de estupro e 89% de vítimas de violência doméstica esperam ser agredidas novamente). Ela pode estar hiper-vigilante; o melhor jeito de ajudar é fazer com que se sinta segura e legitimar/reconhecer seus medos.
Foque-se em preocupações práticas e imediatas. Onde se pode comprar um bastão? Que organizações trabalham com assuntos relacionados à VD? Pergunte-lhe o que ela precisa para ir embora: abrigo? transporte? um emprego? creche? dinheiro? Ajude-a a encontrar esses recursos. Então lhe pergunte o que precisa para ficar de fora do relacionamento. Para a maior parte das mulheres, leva de sete a quatorze tentativas para deixar seus agressores. Se ela não tem os recursos para ficar longe, ela pode retornar porque ele pode sustentá-la. Muitos abusadores manipulam essas necessidades. Isso é o que faz da VD um crime tão pernicioso: o perpetrador é a pessoa que melhor a conhece.
Consiga imediatamente um local seguro para ela. Se ela estiver vivendo com o agressor, certifique-se que ela tem um plano para fugir durante um episódio violento (contate sua coalizão local contra VD para planos de segurança). Ofereça-se para guardar documentos pessoais, uma mala pronta para ela e algum dinheiro extra. Certifique-se de que ela tem um telefone. Um velho celular sem serviço ainda pode discar 190 se carregado. Considere estabelecer códigos para ela usar se precisar de ajuda, ou outros sinais — uma luz desligada na varanda, por exemplo, pode levar os vizinhos a perceber se devem chamar a polícia. Se ela não mora com o agressor, ofereça-se para encontrar alguém que esteja com ela ou nas proximidades. Faça uma checagem de segurança: certifique-se de que as linhas de telefone não possam ser cortadas, de que as portas têm trancas, e de que as janelas estão fixas e fechadas. Se ela quiser ficar escondida, ajude-a a encobrir seu rastro fazendo com que toda a correspondência seja enviada para outro endereço ou para uma caixa postal; ofereça-se para pôr seu nome nas contas. Se ela anda de ônibus ou de bicicleta, encontre um carro emprestado para ela. Encontre pessoas da comunidade que possam passar recados a ela, pegá-la no trabalho, cuidar das crianças etc. 90% dos casos de perseguição são de antigos parceiros íntimos, não de estranhos.
O movimento anti-VD começou como uma via de apoio subterrânea de casas. Considere cuidadosamente aonde ela está. Se o abusador souber onde ela está morando, ela pode se sentir um alvo fácil, especialmente se ela estiver com um homem – a insegurança e suspeita de um abusador pode facilmente virar raiva. A maioria dos casos de extrema violência e de assassinato ocorrem quando as mulheres tentam ir embora, porque o agressor sente que está perdendo o controle sobre ela. Levar uma sobrevivente para a sua casa é um compromisso sério; a menos que você esteja preparadx para internalizar a vigilância constante e sua casa seja muito segura, ela pode ficar mais segura com outra pessoa.
Se ela quiser, ajude-a a usar o sistema legal para requerer um processo jurídico, obter uma ordem de restrição, peticionar custódia ou se divorciar. Discuta os prós e os contras disso em relação a segurança, não política. Até desenvolvermos uma alternativa, não podemos criticar uma mulher por usar “o sistema”. É imperativo, entretanto, que ela não invista sua segurança ou seu bem-estar emocional no sistema de justiça criminal, já que ele frequentemente falha.
A comunidade pode querer lidar com isso ou expulsar o agressor. Algumas comunidades têm submetido agressores ao ostracismo, boicotado seus negócios, se recusado a falar com eles. Você pode fazer cartazes do rosto dele, ou pixar a casa dele com spray. Você pode expulsar agressores da cidade, entendendo contudo que isso tem o potencial de resultar no abuso de mais alguém em outro lugar. Você pode ameaçá-lo com violência. Não importa o que for feito, tem de ser aceitável para a sobrevivente, porque o bem-estar dela está em questão.
Estágio Dois: Nos Ajudando
Há muitos passos que devemos dar como comunidades e coletivos para que sejam espaços receptivos e radicalizantes para sobreviventes. Ao mesmo tempo, devemos ter a responsabilidade pessoal de mudar a consciência pública em relação à violência. Em um estado patriarcal, a violência e os estupros contra mulheres sustentam a opressão sexista e a exploração. Nós não podemos transformar a “cultura do estupro” sem nos comprometermos a resistir e erradicar todo patriarcado.
Devemos redefinir sexo e relações longe de termos de violência, poder, dominação e status. Em nossas relações, podemos tentar criar um novo vocabulário que erotiza consentimento e igualdade.
Homens em particular precisam se organizar. A VD é um problema masculino – e as mulheres sofrem as consequências. Um homem radical que seja heterossexual tem de abrir mão dos privilégios de seu gênero – só então ele pode ser abordável, só então ele será capaz de oferecer ajuda significativa para uma sobrevivente. Você não pode ajudar uma sobrevivente enquanto permite que outras formas de sexismo triunfem. Não consuma corpos femininos em pornografia se você espera ajudar uma sobrevivente de estupro. Homens podem desaprender sua construção de gênero e minar o patriarcado; imagine se cada garoto crescesse entre homens que estivessem lutando contra o patriarcado e a violência.
Relato
Taheera chamou a polícia depois de Mark ter ameaçado levar seu bebê de cinco meses, Juan. Havia machucados no pescoço dela de um incidente anterior, e Mark foi preso. Foi ideia de Mark mudar-se para a cidade quando Taheera estava no terceiro mês da gestação. Taheera começou a ir a uma clínica de baixo custo para os cuidados pré-natais, mas parou de ir quando Mark a acusou de dormir com o médico. A primeira vez que Mark bateu nela foi depois que ela fez uma lista de nomes de bebês. Ele estava com ciúmes da atenção que o bebê estava recebendo.
Eu sou uma assistente social, e uma agência a encaminhou para mim. Quando falamos pela primeira vez, Taheera ficava olhando para trás. Eu sugeri que ela empurrasse sua cadeira contra a parede, e prometi a ela que eu ficaria cuidando da entrada para ver se Mark não viria (embora Mark estivesse na cadeia e não fosse aparecer).
Ela estava com medo de Mark e do que ele poderia fazer a ela e ao bebê, especialmente agora que tinha sido preso. O emprego de Mark era a única fonte de receita deles, e ele poderia ser demitido se não saísse logo da cadeia. Ela tinha muitas perguntas sobre o sistema legal e estava curiosa para saber se eu tinha falado com outras mulheres que se sentiam como ela. Falamos sobre grupos locais e abrigos que poderiam ajudar, mas na maior parte do tempo eu apenas escutei. Eu lhe dei meu número e um número 24 horas para uma crise emergencial. Taheera escolheu pagar a fiança de Mark, usando todas suas economias, mas não falar com ele. O estado mandou Mark assinar uma “ordem de não-contato” dizendo que não poderia manter contato com ela ou voltar para casa; assim ele conseguiu um apartamento em cima do dela, e trouxe muitas “prostitutas” para casa para que Taheera visse. Taheera não compareceu no tribunal e o caso foi interrompido.
Duas semanas depois, Taheera ligou e disse que Mark estava no andar de cima, Juan o estava chamando, e que ela estava tentando resistir a subir até ele. Ela sentia saudades dele. Eu simplesmente escutei, e lhe disse, da melhor forma que pude, que os seus sentimentos eram normais. Ela continuou perguntando “O que está errado comigo?”. Eu tentei focar nos problemas de Mark. Taheera finalmente concordou em caminhar para o centro da cidade e se juntar a um grupo de apoio que tivesse creche. Mas ela nunca fez isso; ao invés disso, subiu para o andar de cima até Mark.
Oito meses depois, Taheera ligou de um telefone público. Mark tinha apontado uma arma para a cabeça dela porque estava bravo porque eles moravam agora no apartamento do andar de cima, mas ele ainda tinha de pagar o apartamento do andar de baixo. Ele cortou o telefone para que ela não conseguisse fazer ligações. As coisas tinham ficado bem por um tempo: Mark a tinha deixado arrumar um emprego e estava sendo um “bom papai”. Taheera me disse que ela tinha ido embora algumas vezes, mas toda vez ele a havia encontrado ou tinha ameaçado a família dela. Taheera se sentia muito cansada para fugir, e apenas queria que as coisas “ficassem sãs”.
Taheera decidiu economizar dinheiro. Nos encontramos numa tarde para almoçar e fizemos uma lista do que fazer, que eu guardei para que Mark não visse. Eu também lhe dei um celular antigo para ligar para a polícia, que ela escondeu em um armário; ela abriu uma conta bancária separada e começou a depositar parte de seu pagamento nela. Ela contou a uma vizinha o que estava acontecendo e deu-lhe uma mala para que guardasse. Eu procurei um abrigo da Seção 8 na sua cidade, e tive os documentos enviados para o meu escritório. Taheera me pediu para procurar recursos de violência doméstica em sua cidade através de meu computador, porque Mark verificava quais sites ela visitava quando ele chegava em casa do trabalho. Mark suspeitou mais ainda, provavelmente porque Taheera parecia estar mais feliz. Mark começou a ligar para o trabalho dela e desligar, e continuou com isso até que ela fosse demitida. Ele comprou um celular para ela a fim de que ele pudesse ligar repetidamente a qualquer hora em que ela estivesse fora. Ele começou a não deixá-la sair de casa com Juan, para que ela tivesse de voltar. Ele pegou as chaves do carro. Oito meses depois, Taheera poderia ter desistido, porque Mark parecia estar se dando conta.
Eu não sei de todos os detalhes, mas uma noite Taheera conseguiu alguém da sua igreja para estacionar do lado de fora dos apartamentos e começar a gritar. Mark, facilmente incomodado, saiu para fazê-los calar a boca, e ela e Juan pegaram suas malas dos vizinhos e saíram através de uma porta de trás, onde o amigo da igreja os pegou.
Eu não sei se a história de Taheera é uma história de sucesso, mas é uma história real. Desde então, Mark encontrou o lugar onde ela mora e ganhou o direito de visitar Juan através do judiciário. Mark também a agrediu duas vezes desde que ela fugiu, uma tirando ela e Juan da estrada. Taheera, entretanto, cortou sua conexão com Mark e quebrou o ciclo de abuso. Algumas vezes eu penso sobre x amigx da igreja e sobre a vizinha, e penso o que teria acontecido sem elxs.
Recentemente, ela leu um artigo sobre eu ter sido presa por protestar e perguntou o que eu estava fazendo. Eu lhe disse que luto contra violência e hierarquia em todos os níveis e ela ficou murmurou “oh”. Mas ontem ela deixou uma mensagem dizendo que estava lendo bastante e perguntando se eu tinha autores favoritos. Estou pensando em Emma Goldman ou um pouco de Naomi Wolf.