Adeus à Revolução – Tomàs Ibañez

tradução: Rodolpho Jordano

adeus à revolução (1984)
tomás ibáñez

Qual a relação que há entre, de um lado, anarquismo
e, de outro, revolução social? O movimento anarquista
abandonou tal pergunta há muito tempo e, em certo
sentido, pode-se dizer que o debate “revolução: sim ou
não” é uma controvérsia antiga ou, se preferirmos, uma
polêmica para dinossauros ideológicos, entre os quais
evidentemente eu me incluo. Afirmo que o conceito de
revolução é antiético ou incompatível com o pensamento
anarquista por ser um portador histórico de uma série
de consequências ou efeitos que são necessariamente
“liberticidas”.
Não se trata, porém, de pôr em questão o “desejo da
revolução”, pelo contrário, pois este consiste num elemento
fundamental da sensibilidade social emancipatória e do
pensamento utópico.Os libertários e, com eles, milhões
de pessoas, sonham, mais ou menos vagamente, com uma
mudança social que desembocaria em uma sociedade
radicalmente diferente da que conhecemos. Este sonho
constitui um elemento do imaginário social desde
o tempo, não tão distante, em que se descobriu que as
formas sociais são formas sócio-históricas, ou seja, formas
relativas, e que, portanto, concebeu-se agir sobre elas para
voluntariamente modificá-las. Desejar ativamente viver
“em outro lugar”, em relação ao social instituído que
conhecemos, constitui certamente o imperativo de toda
ética. Portanto, não é o desejo de revolução que deve ser
questionado. Ao contrário, o desejo de revolução constitui
um elemento fundamental de todo pensamento crítico e é
uma parte indispensável da utopia libertária. Por sua vez, o
que resulta seriamente problemático é o projeto de revolução.
Ou seja, a elaboração política ou estratégia do desejo de
revolução, sua tradução concreta em uma concepção e
uma prática sociopolítica que se queira libertária. O que
se apresenta seriamente problemática é a constituiçã
todos os meios que podemos utilizar estão carregados de
efeitos secundários não desejados e não controlados. O
anátema lançado contra a violência dos dominados não
parece justificável, a menos que se dirija a uma eventual
“estratégia da violência”, e nesse caso também eu estaria de
acordo. Além do aspecto insurrecional da revolução, o que
é posto em questão se refere a um problema fundamental
ligado à mesma lógica do conceito de revolução. Uma
análise histórica da emergência e do desenvolvimento
do conceito de revolução social nos mostraria até que
ponto este conceito tem sido marcado pelo modelo
científico próprio da mecânica clássica e até que ponto é
tributário da ideologia científica cientificista, determinista
e dominadora que impregna o modelo “científico galileunewtoniano”.
Lappo Berti1
realizou esta análise em um excelente
artigo publicado na revista Aut-Aut, por isso não tratarei
este ponto de forma detalhada e me limitarei a assinalar
que o conceito de revolução tem sido fundamentalmente
útil, de um modo histórico, para os desígnios da burguesia
e, de um modo mais geral, para os projetos de qualquer
tentativa de poder político.
Este aspecto por si só bastaria para projetar uma
sombra de dúvida sobre a pretendida pertinência libertária
do conceito de revolução, mas o que importa é assinalar
outros aspectos e, para isto, é necessário distinguir algumas
características da ideia de revolução. Uma revolução
não se reduz certamente a uma simples transformação
da sociedade; é necessário especificar ao menos cinco
elementos suplementares para dar conta dela:
1. É uma transformação relativamente brusca e rápida,
do contrário, os termos “revolução” e “evolução” seriam
intercambiáveis.
2. É uma transformação radical, do contrário, se falaria
de um simples reajuste ou de “reforma” social.
3. É uma transformação orientada ou finalista, sendo
que os libertários não são “democráticos”, não se satisfazem
com a noção de realização do desejo majoritário das
pessoas e exigem que, para ser autêntica, a revolução deve
constituir seus próprios critérios.
4. É uma transformação global, que concerne a toda
sociedade, caso contrário, seria de uma prótese social local.
5. Por último, enquanto projeto político, a revolução se
converte necessariamente em um objetivo transcendente.
De fato, os efeitos atribuídos à sua realização são
suficientemente importantes, porque este objetivo, a
revolução, situa-se em um plano qualitativo diferente
dos outros objetivos, relegando-os a uma situação de
subordinação hierárquica.
Se analisarmos as diferentes consequências que derivam
das cinco características enunciadas, é fácil ver por que a
ideia de revolução se fez incompatível com o anarquismo,
desde o momento em que ela tomou forma de um projeto
político, ou seja, de um projeto virtualmente realizável e
que orienta uma prática social contrária à dos libertários.
Muito brevemente, assinalo três destas razões:
1. A ideia de revolução, enquanto um objetivo
transcendente e supremo, reintroduz necessariamente
um elemento teológico no pensamento libertário. Este
objetivo supremo torna legítimo o sacrifício do presente
ao futuro, do tempo concretamente vivido ao tempo
puramente ideal, para não falar de outros sacrifícios que
se estendem do autossacrifício militante ao sacrifício
alheio, passando pelo sacrifício dos “princípios”. Desde o
momento em que haja um objetivo transcendente, um fim
supremo, um valor colocado no tempo futuro, todos os
sacrifícios do presente estão permitidos.
Se a revolução puder ser efetivada graças a uma
estratégia, qualquer que seja, não nos poderíamos chamar
libertários se não tentássemos realizá-la custe o que
custar. Os milhares de mortos que cotidianamente a
sociedade instituída provoca, os inúmeros sofrimentos
e humilhações a cada momento, a injustiça permanente
não nos deixariam opção. Se a revolução está inscrita
como possível consequência de uma estratégia, nada pode
justificar a renúncia a esta estratégia. A afirmação de
que “o fim não justifica os meios” perde neste contexto
todo significado que não seja moralista e piedoso..
Que

importam as justificativas se o resultado constitui o fim
da barbárie?
Trata-se, certamente, de um velho debate, mas aqueles
que acreditavam verdadeiramente que a revolução pudesse
ser uma consequência direta de suas ações tinham razões
para “depreciar” os “bons sentimentos” dos libertários. É
efetivamente necessário escolher entre a crença no projeto
revolucionário, de um lado, e a “ideologia” libertária, de
outro. Não se pode ser anarquista e desenvolver um projeto
revolucionário, já que este nega o conjunto dos valores
libertários. Não tê-lo compreendido levou os libertários
da primeira metade do século XX a incríveis aporias,
escavando um fosso entre sua prática e sua ideologia.
2. A ideia de revolução enquanto projeto global e
totalizante, que se refere ao conjunto de uma sociedade
dada, é necessariamente um projeto totalitário porque
“anula” em um mesmo ato o conjunto de trajetórias
individuais, subordinando o particular ao geral. Na
realidade, a sociedade é um sistema, no sentido forte do
termo: todas suas partes interagem umas com as outras e
estão relacionadas entre si. A sociedade é mais que uma
soma de partes, mas ela também é menos do que a soma
de suas partes, pelo simples fato de estar interligada em
um sistema, cada parte sofre as exigências que limitam a
expressão de suas características O “projeto revolucionário”
comporta também um “projeto de sociedade”. Não se trata
de um simples projeto negativo dirigido para a destruição
do social instituído, mas também comporta a proposta
de um sistema social alternativo. Em consequência, o
projeto revolucionário se apresenta como um desenho
que afetará, de um jeito ou de outro, a existência de cada
uma das partes que compõem a sociedade, para além
destas partes quererem ou não se adaptar ao projeto
de sociedade concebido pelos “revolucionários”. Um
projeto de sociedade pode estar concebido de maneira a
maximizar a liberdade e a autonomia de cada elemento
social, mas cada elemento deve se ajustar ao conjunto e
este conjunto deve assegurar a compatibilidade, exercendo
sobre este elemento as operações materiais e ideológicas
necessárias. O modelo de sociedade vinculado por um
projeto revolucionário, portanto, é um modelo para todos.
Pode-se duvidar de que a finalidade da ação libertária
consista em promover um sistema social, qualquer que
seja, na medida em que, por definição, este sistema será
parcialmente imposto.
3. Por último, a ideia de revolução implica a crença no
determinismo social, isto é, a crença de que a sociedade é
uma espécie de máquina regida por leis, sobre a qual se
podem aplicar algumas ações casuais para produzir efeitos
controlados e previsíveis. Sem esta crença o “projeto
revolucionário” não tem sentido, já que uma estratégia
somente pode ser elaborada se estiver baseada numa
relação causal entre operações realizadas e consequências
produzidas ou, pelo menos, numa convicção nestas
qualidades casuais. O que leva a ignorar simplesmente
que a sociedade é um sistema auto-organizado e por
isso fortemente imprevisível em suas relações e em seu
funcionamento. E isto leva também (porém, esta é outra
questão) a aceitar um modelo de conhecimento do social
baseado no controle do objeto a conhecer, ou seja, em
última instância baseado no controle social.
Definitivamente, o pensamento libertário não pode
alojar em seu seio o conceito de revolução e deve inclusive
abandonar o uso do termo. A atividade prática dos libertários
pode, eventualmente, desencadear ou provocar uma revolução,
mas nunca como resultado de um projeto racional e coerente.
O “desejo de revolução” e a “utopia” subjacente nas práticas
libertárias constituem poderosos elementos de mudança
social. Podem forçar o sistema social a se reestruturar sem
que se saiba muito bem como e por que. Por sorte, nem os
libertários nem quaisquer outros dominam suficientemente
os mecanismos e as regras sociais para poderem controlá-las
e dirigirem voluntariamente seu curso.
Para terminar, gostaria de lembrar que o anarquismo
é um sistema em devir, um sistema essencialmente
mutável, que em suas origens estava cheio de fracassos
e de rasgos autoritários, e ainda hoje continua os tendo.
Numa perspectiva anarquista crítica, trata-se, por assim
dizer, de melhorar o anarquismo dia após dia, livrando-o
paulatinamente de seus conteúdos autoritários. Hoje,
o progresso do pensamento anarquista passa por três
condições fundamentais:
1. Abandonar explicitamente o conceito de revolução,
dar continuidade à crítica e tirar todas as consequências
deste abandono.
2. Reconhecer a impossibilidade de uma sociedade
privada das relações de poder e também tirar as
consequências disso.
3. Reconhecer que nem todas as finalidades positivas
são necessariamente compatíveis entre si e tirar as
conclusões.

Utopia
Se o que foi dito é certo, isso é verdadeiramente
lamentável, pois era agradável sonhar com uma sociedade
sem poder, crer que todos os valores que nos pareciam
positivos pudessem se organizar em uma espécie de buquê
harmonioso, e era efetivamente exultante viver lutando
pela revolução. Nós, anarquistas, estivemos entre os
primeiros a proclamar que o homem deveria se habituar
a viver sem deus, ainda que isto fosse frustrante e difícil;
hoje, os anarquistas, e os homens em geral, devem aprender
a viver abandonando a crença na revolução.

Tradução do espanhol por Rodolpho Jordano Netto.
Revisão técnica de Beatriz Scigliano Carneiro.

Notas
1 Lappo Berti. “Rivoluzione o…?”. In Aut-Aut, janeiro, 1980, Milão