O vírus anarquista
Você cita em um livro Christian Ferre: “o anarquismo não se ensina e tampouco se aprende pelos livros, mas se propaga por contágio, e o contágio na maioria das vezes e irreversível”. Em seu caso foi assim, é uma história de fidelidade que dura já meio século. Quais foram teus primeiros contatos-contágios com o anarquismo? Creio recordar que há histórias familiares ai no meios, é assim?
Tomás Ibáñez. Sim, Amador, há efetivamente histórias familiares ai no meio e isso explica que “os contatos” com o anarquismo fosse muito precoces. Em 1947 minha mãe, ativista das juventudes libertárias de Zaragoza, foi para a França levando-me em seus braços por um caminho pirenaico, e esse fez que eu crescesse no quente ambiente de exílio libertário. Era um ambienta por onde circulava uma multidão nostálgica, porém esperançosos, relatos de uma luta revolucionária ainda próxima, e aonde a ajuda mútua nunca se fazia esperar. Obviamente, a sensibilidade de um menino não podia captar que esse ambiente também abrigava lutas fratricidas, ranços dogmáticos e inevitáveis misérias , com as quais a impressão que me deixou só poderiam ser positivas. Esse foi “o contato”, entretanto “o contágio” chegaria mais tarde.
Quando e por onde?
Tomás Ibáñez. Meu cedo ativismo anarquista poderia ter esgotado e se extinguir sem mais, não foi assim porque no verão de 1963 arrastei meu saco de dormir até o acampamento que organizava a cada ano a FIJL (Federação Ibérica de Jovens Libertários). Foi uma experiência inovadora que abriu de par em par as portas, já definitivamente, ao vírus do anarquismo. Auto-organização, vida em comum, companheirismo, debates, sentimento de viver num outro planeta aonde a igualdade e a liberdade se havia feito realidade, mas também raiva e luta. Porque se dava o franquismo e a execução por garrote de dois de seus militantes, Francisco Granado e Joaquim Delgado, que preparavam um atentado contra Franco, caio no acampamento como uma indignidade e dolorosa notícia. Ao recolher minha mochila e me despedir de meus companheirxs, a ideia de voltar para “normalidade” se fez insuportável, no trem que me devolvia para minha casa eu avistava os vilarejos e me sentia como um absoluto estranho em um mundo que já não era meu.
Eu suportei essa “normalidade”, mas o sentimento de que era intolerável nunca me abandonaria. Desde então estou convencido de que o que de verdade deixa marca nas pessoas e as transforma profundamente é sua imersão em um cenário de vida, de experiências e de luta que se constrói em comum e nos espaços arrebatados das regras da sociedade instituída.
O “A” dentro de um círculo: a origem desconhecida de um símbolo.
Logo se moveste nos círculos do anarquismo estudantil antes de Maio de 68, que recordações te veem daquela época?
Tomás Ibáñez. O que evoca em mim, como um primeiro flash, é a imagem de um inacabável deserto. Durante meu primeiro ano da universidade, em 1962 em Marselha, me movia no potente sindicato estudantil daqueles anos sem conseguir me entender com nenhum outro estudante libertário. No ano seguinte me transferi para a universidade de Paris aonde, no início dos cursos, uns estudantes trotskistas me informaram, entre risadas, que conheciam “outro” estudante anarquista da Soborne e que podiam nos pôr em contato.
A partir daí, pensando que sendo dois já eramos invencíveis removemos ceu e terra até encontrar outro par de companeirxs… E assim nasceu em 1963 uma pequena coordenação de estudantes anarquistas parisienses que tinha o nome de mulher, LEA, que cresceu pouco a pouco e que atrairia, algum tempo mas tardes, estudantes da recém-criada universidade de Nanterre, como Danieal Cohn-Bendit e Jean-Pierre Duteuil, que contribuirão para a criação do Movimento 22 de Março que incendiou o pavio de Maio de 68.
E o que há dessa história que te situa na origem do símbolo anarquista por excelência, o “A” dentro de um círculo?
Tomás Ibáñez. É bem certo, e é uma muito sensível. Ao chegar em Paris me coloquei com objetivo de ajudar e aproximação entre os diversos grupos e tendências na que se fragmentava o diminuído movimento anarquista, o que me levou a começar iniciativas de coordenação nos setores mais jovens. Ocorreu-me então que uma forma de propiciar uma confluência consistia em encontraram denominador comum que, ao não pertencer exclusivamente a nenhuma das organizações, poderia construir um ponto de concordância. Se tratava também de multiplicar a presença do movimento anarquista pelo simples eixo da repetida aparição desse denominador comum nas expressões públicas (panfletos, pintados, etc.) dos diferentes coletivos anarquistas.
Propus essa ideia em um dos grupos que eu pertencia, insistindo em que devia ser um símbolo que fosse fácil e rápido de desenhar, e que pudesse evocar o anarquismo de forma suficientemente direta. A proposta foi aceita, nos lançamos numa chuva de ideias e a altas horas da noite concordamos que um “A” em um círculo podia ser um bom logo. Foi assim, em abril de 1964, saia em página inteira no número 48 de nosso boletim “Juenes Libertires”, o primeiro “A” no círculo, O acompanhava um editorial aonde explicava o sentido da proposta e no que se convidava a todos os grupos anarquistas a se apropriar desse símbolo.
Porém hoje, na realidade só havíamos criado uma imagem e formulado uma proposta, não havíamos criado um símbolo. O “A” no círculo só se converteria num símbolo do anarquismo mediante a ação de milhões e milhões de mãos que o pintaram nas ruas do mundo, se trata pois de uma criação coletiva multitudinária que não tem nada de paternidade.
Maio de 68: tecnologias, lideranças e resultados
E de repente Maio de 68. Fala de Maio de 68 como uma “dádiva”. Porque uma “dadiva”? Qual foi o conteúdo da dádiva?
Tomás Ibáñez. Uma autentica dádiva é algo que te oferecem para te dar prazer, sem obrigação e sem pedir nada em troca. Se não o espera, se é uma surpresa e se te enche de satisfação, a dádiva ainda cresce mais em sua condição de “autentica” dádiva. Isso foi Maio de 68. No imediato, o conteúdo da dádiva foi a oportunidade de viver várias semanas um verdadeiro sonho, de presenciar algumas cenas que usualmente só conseguimos ver quando os sonhos nos transportam para longe das realidades cotidianas. E também consistiu em demonstrar, de fato, que aquilo que, incrivelmente, estava ocorrendo era possível posto que, precisamente, estava ocorrendo.
Posteriormente, a dadiva consistiu em deixar uma recordação que segue transportando aquele período ao presente como se o tempo não existisse, sem alterar a intensidade das vivências que alí aconteceram. E também consistiu em enraizar o convencimento de que se aquilo havia ocorrido podia voltar a ocorrer, com outros detalhes, em outros contextos, mas com as mesmas características básicas.
Eu gostaria de citar aqui a descrição da vivência de Maio de que você fez no número da Archipiélago que dedicamos ao Maio de 68:
(…) Estamos talvez no momento auge de Maio, as vivências fluem de forma incontida e as volto aqui de forma desordenada. Sentimento de ser parte de uma comunidade criada muito rapidamente mas atravessada por laços muito intensos que, paradoxalmente, parecem vir de antigamente, inserção de um “nos outros” formado por muitos desconhecidos e entretanto muito próximos, muito cúmplices, criação de novas relações sociais, novos amigos. Necessidade de estar sempre disponível, em cada instante, sempre em alerta, diante de um futuro imediato que se vai construindo no momento, sem pretensões. Presos num ritmo desenfreado, vertiginoso, mescla de exaltação e de esgotamento, impressão muito forte de fazer história, de ser protagonista, de ter efeitos sobre a realidade, de estar constantemente confrontados a desenvolvimentos imprevistos que superam seus protagonistas, e, durante um tempo, impressão de ir a cada dia mais, de acertar nas ações empreendidas. Alegria e entusiasmo, um prazer nascido da própria ação na qual se está imerso. Desejo muito intenso de que aquilo não acabaria nunca. Impressão de que um estava fazendo coletivamente coisas que não se podiam fazer e que eram impensáveis até esse momento. Impressão de desafiar o estabelecido, o poder, o intocável. Impressão de haver posto a máquina “fora de controle”, de haver lançado um processo de reação em cadeia, imparável, imprevisível….
Um processo de reação em cadeia “imparável e imprevisível”, que detonaram os estudantes mas que alcançou em seguida o movimento operário, desembocando em poucos dias numa greve geral massiva que paralisou durante um mês o país inteiro. A velocidade e intensidade da comunicação entre distintos sujeitos foi potencializada. Mas… aonde estava o Twitter?
Tomás Ibáñez. Acontecimentos como os de Maio de 68 foram produzidos em outros momentos da história, eferverscências populares que estouram imprevisivelmente e aonde a gente “atua por si mesmo”, não esperado o surgimento das novas tecnologias nem a constituição das redes sociais. Creio, isso sim, que em cada época essas eferverscências populares, no mesmo momento destrutivas e construtivas, vem sabendo se apropriar e utilizar as tecnologias existentes, o rádio foi importante em Maio de 68, e as oficinas de serigrafia, entre outras coisas. Entretanto, em todas essas situações de eferverscência nada pode substituir a coo presença física das pessoas, os gestos, as vozes, os olhares, as palavras, os atritos.
Também creio, como explico em meu livro, que as novas tecnologias e as redes sociais têm características que fomentam o processo de auto-organização das pessoas em situações de efervescência popular, mas não porque se usam com fins e resultados auto-organizativos, e sim simplesmente porque propicia confluências massivas sem que exista uma estrutura prévia, um plano preestabelecido, uma direção que ordene e canalize as atividades.
Visto que o primeiro 15M se caracterizou pelo anonimato (nenhum rosto em particular se converteu no símbolo do protesto), hoje se dá, em torno das figuras (tão distintas) de Ada Colau ou Pablo Iglesias, um debate sobre a necessidade ou pertinência das lideranças. Queria perguntar sua opinião sobre a particular e sobre a “liderança” de Daniel Cohn-Bendit em Maio de 68, o líder paradoxo de um movimento que se caracterizava por seu rechaço pela delegação e a representação. Em que contribuía a liderança de Cohn-Bendit e em que limitava?
Tomás Ibáñez. Os lideres sempre são mais perigosos quanto mais carismáticos, e é inegável que todo o sistema atual concorre para instituir e potencializar lideranças. Na sociedade do espetáculo os rostos vendem, e também tranquilizam quando substituem o anonimato das efervescências coletivas. Certamente, os lideres ajudam a dar visibilidade aos movimentos e a ampliar sua presença midiática mas o preço a pagar é altíssimo. Quantos lideres aceitam voltar ao anonimato antes que se esgotem suas possibilidades de seguirem sendo lideres? Ada Colau constitui sem dúvida uma grande exceção.
A liderança em movimentos baseado na democracia direta constitui uma aberração. Daniel Cohn-Bendit teve, indiscutivelmente, um papel de líder, mas era um líder atípico, não pretendia “representar” o Movimento de 22 de Março, além do que, não tinha cargo nem nenhum porta-voz oficial permanente e que decidi-o auto dissolver-se no fim de dois meses. Dany também era atípico porque participava politicamente da ideia de que não devia haver lideres, o que lhe situa numa difícil posição que entrava em confronto com suas convicções e com as de seus companheiros. Seu papel de líder suscitava criticas internas e se tomavam medidas para questionar essa liderança, como, por exemplo, convocar coletivas de imprensa utilizando seu nome para que viessem os meios, mas aonde era outrx companheirx que interviam no final, explicando que Cohn-Bendit era um nome coletivo (“todos somos Cohn-Bendit”) sobre o qual poderia fala qualquer membro do 22 de Março.
Em algum lugar você disse que não tinha sentido falar de Maio de 68 em termos de “êxito” ou “fracasso”, por quê?
Tomás Ibáñez. Não se pode falar de êxito ou de fracasso porque esses termos só se aplicam a ações intencionais e Maio de 68 não foi um projeto, nem se fraguou para alcançar alguns objetivos, foi um “acontecimento” em todo o sentido da palavra. Agora bem, os acontecimentos normalmente tem efeitos e produzem coisas. Maio de 68 foi um acontecimento de certa magnitude, objetiváveis em termos quantitativos de participação popular ou de duração, etc. Entretanto, seus efeitos, são comparáveis quando no bater de assas de uma mariposa na Australia provoca uma tormenta na Europa, foram infinitamente superiores a sua magnitude e ainda se manifestam ao longo de meio século. Sensivelmente, Maio de 68 mudou a cultura popular, práticas incluídas, da dissidência, por uma parte, e muitos dos pressupostos culturais da sociedade por outra parte. De fato, as atualidades práticas do antagonismo social popular conectam em grande medida com as que promoveram Maio de 68 e de fato que teve sobre as mudanças culturais a respeito da identidade sexual, por exemplo, são inegáveis.
Atualidade do anarquismo: transformas a sociedade sem tomar o poder
O Que pode trazer o anarquismo para os movimentos atuais?
Tomás Ibáñez. Um dos elementos mais interessantes que pode oferecer é a relevância do “prefigurativo” frente a cisão entre meios e fins típica da política clássica. É um princípio básico do anarquismo: não sacrificar nem suspender os valores que se defende no presente a promessas que por definição, sempre apontam para o futuro. Em qualquer caso, esse futuro que se almeja deve estar “já presente” nos passos que se dão para o construir, o “prefigurativo” não significa outra coisa do que essa necessária presença.
O anarquismo sempre tem proposto uma “revolução no presente” que remete na desconfiança em direção a qualquer discurso que baseia sua força persuasiva nas promessas que oferece e na prevenção frente a qualquer prática que só se oriente a preparar o futuro. Sua ética está atravessada de cabo a rabo pela exigência de reduzir ao máximo a distância entre o que se diz e o que se faz, ou entre o que se quer ser e o que se é.
Outro essencial seria substituir a ideia de “tomar o poder” pela “transformação da sociedade”. Parece-te dois termos dicotômicos, vasos comunicantes?
Tomás Ibáñez. Uma velha ideia anarquista diz que nunca se toma o poder, que o poder sempre te toma logo que se crê havê-lo tomado. Agustín Garcia Valvo o sistematizava muito bem quando declarava que “o inimigo está escrito na mesma forma de suas armas”, tomar suas armas é transformar-se já no inimigo. Uma das lições básicas do anarquismo passa por afirmar a convicção de que possivelmente não haja caminho, mas que, em qualquer caso, o caminho do poder nunca pode ser o caminho.
A ideia de transformar a sociedade sem tomar o poder, que goza hoje de certa popularidade, sempre inspirou o anarquismo e, claro, tem lhe posto numa delicada situação de ter que conciliar o sensato possibilismo de melhorar o melhorável ou, também impedir o pior, e o indispensável radicalismo que aponta para a incongruência de comprometer-se com aquilo mesmo que se questiona. A solução mais satisfatória sempre tem sido de tipo “indexical”,é dizer, nascer uma valorização em função de cada contexto particular, ou, dito de outra forma, não “dividir” radicalmente os valores das situações nas que se intervem, o que não significa, certamente, “recusar” as situações, coisa que nos faria vulneráveis pela sedução exercida pelos “atalhos do poder”.
Para terminar, Tomás, não creiés que muitas vezes o anarquismo (como movimento organizado, como ideologia ou com identidade) é o principal inimigo das ideias/praticas anárquicas?
Tomás Ibáñez. Eu não diria que “o principal inimigo”, existem muitos outros e muito mais latentes, começando peça repressão, mas sim que o fato que o anarquismo constitua umas organizações que reproduzem inevitavelmente as caraterísticas, mais ou menos acentuadas segundo os casos, de todas as organizações (estruturas, lutas e desejos de poder, tendência a converter a organização em um fim em si mesmo, patriotismo da organização, etc.), o fato de que o discurso anarquista se petrifique em ideologia e que o peso da história construa uma identidade anarquista enraizada em um padrão fixo e imóvel, não só limita a proliferação do anarquismo encerrando-o em um gueto, como que representa, também, certo questionamento de suas próprias premissas.
Por isso é necessário atuar constantemente para que o anarquismo seja movimento, para que suas águas se mantenham sempre turbulentas e para que não se separe nunca de uma sensibilidade crítica dirigida, inclusiva, para si mesma. Se estou seguro de uma coisa, e pode se que seja a única, é que não há anarquismo mas genuíno que aquele que está disposto a pôr constantemente em perigo seus próprios fundamentos voltando para si mesmo a mais irreverente das visões críticas.
Publicado originalmente em 11 outubro, 2017 in.: http://lobosuelto.com/?p=7543. Traduzido por Rodolpho Jordano Netto