Anarquistas contra o nazismo

A história da resistência anarquista alemã não é bem conhecida. Por isso tentarei fornecer sistematicamente uma orientação mínima dentro de um tema tão pouco estudado. Para começar, é necessário dizer algumas palavras sobre a história do movimento Anarquista na Alemanha. Max Nettlau (historiador e militante anarquista) identificou suas origens no “Círculo dos livres de Berlin”, que se formou em torno de 1848, onde também faziam parte Max Stirner, os irmãos Bauer entre outros. Na segunda metade do século XIX, gradualmente, toma forma um movimento anarquista que tem a ver com o partido socialdemocrata mais forte da Europa, o SPD (Sozialdemokratische Partei Deutschlands).

O pequeno movimento anarquista alemão experimenta um ‘boom’ promissor, mas de curta duração nos anos posteriores a I Guerra Mundial, em muito devido ao antimilitarismo presente na população, exausta pelo conflito e suas pesadas consequências sociais.

A anarco-sindicalista FAUD (Freie Arbeiter Union Deutschlands – União Livre dos Trabalhadores Alemães), surge em 1919 das cinzas de uma organização sindicalista-revolucionária do pré-guerra, chegando a alcançar entre 1921 e 1922 a significativo número de 200.000 militantes, afirmando-se como a principal organização anarquista (mas não a única) da Alemanha. Ainda em 1923 se inicia uma fase de declínio que leva a FAUD já em meados de 1929 a contar com alguns poucos milhares de militantes. São sob estas condições que os anarquistas alemães começam a enfrentar a cada vez mais brutal e preocupante ascensão do Partido Nazista e de Adolf Hitler. Da mesma forma como a italiana, a resistência anarquista ao nazismo também é “longa”. De fato, se inicia alguns anos antes da ascensão e subida de Hitler ao poder, como contraposição ao partido (nazista) que por sua vez, buscava expandir-se além das fronteiras alemãs.

ANTES DO REGIME NAZISTA

De forma imediata, os anarquistas se preocuparam com a ascensão do nazismo, tanto que na imprensa britânica do final dos anos vinte, podia-se ler artigos que já advertiam sobre o perigo nazista. Porém o antinazismo dos anarquistas não se esgota com a atividade propagandística. Das fileiras da FAUD surge no final dos anos de 1929 a experiência das “Schwarze Scharen” (algo como “Formações Negras” em tradução livre), uma das expressões mais surpreendentes e inovadoras do antifascismo anarquista nos anos precedentes ao inicio do regime nazista. A Schwarze Scharen é uma rede de grupos espalhados por diversas regiões da Alemanha (Alta Silésia, Berlin, Hesse, Turíngia, Renânia do Norte-Westphalia) que praticam a autodefesa militante e antifascista, reconhecendo-se como organização integrada, porém, independente da FAUD e apresentando-se em público totalmente vestidos de preto. Estes grupos praticam e combinam o antifascismo com propaganda, em jornais como o Die Proletarische Front (A Frente Proletária) de Kassel, e o Die Schwarze Horde (A Horda Negra), além da ação militante.
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As Schwarze Scharen, de fato, travaram violentos confrontos com os nazistas onde estes se faziam presentes e em particular com as S.A (Sturmabteilung – “Sessões de Assalto”), inclusive com pistolas e fuzis em mãos. Em 1932 a polícia descobre um deposito clandestino de armas, pólvoras e explosivos escondidos pelas Schwarze Scharen (na previsão da tomada do poder por Hitler), na região de Beuthen (hoje atual Polônia). Os militantes que cerram fileiras e animam o Schwarze Scharen, em sua maioria são jovens proletários e sem trabalho. Há algumas centenas de militantes espalhados por toda a Alemanha, e nas áreas que estão presentes fazem sentir de forma contundente sua presença e peso, onde buscam estimular a construção de uma ‘frente unitária’ dos de baixo, de todos os explorados, independentemente de sua vinculação ou origem política, baseando-se na ação-direta antifascista.

CONTRA O REGIME NAZISTA DENTRO E FORA DA ALEMANHA

A repressão desencadeada a partir de 1932 sobre as Schwarze Scharen e sobre o movimento anarquista alemão se intensifica em 1933, quando Hitler assumiu efetivamente o poder. A bem da verdade, já em 1932, a FAUD reunida em congresso na cidade de Erfurt, havia decido preparar-se para a clandestinidade. Deste momento e esquematizando ao máximo, podemos identificar cerca de três planos na resistência anarquista contra o nazismo.

Dentro da Alemanha (de 1933 a 1937/38):

Poucas horas depois do incêndio do Reichstag (em 27 de Fevereiro de 1933), é preso o poeta anarquista Erich Mühsam (que será assassinado no campo de concentração de Sachsenhausen no ano seguinte), enquanto que Rudolf Rocker e sua companheira Milly, conseguem refugiar-se na Suíça: assim são postos fora do jogo dois importantes expoentes do movimento anarquista alemão. Depois de um primeiro momento de confusão e fuga, os anarquistas conseguem organizar uma rede clandestina que conta também com alguns apoios no exterior (Amsterdã e Espanha). Já em Maio de 1933, foram difundidas na Alemanha as primeiras publicações de jornais anarquistas de forma clandestina.

Entre elas devemos mencionar o Die Soziale Revolution (A Revolução Social) de Leipzig, periódico promovido por Ferdinand Götze, que será publicado entre 1933 e 1935 (oito números documentados), com uma tiragem em torno de duzentos exemplares por edição. As atividades de resistência cessam entre 1937 e 1938 por causa da dura repressão que se irrompe sobre as fileiras anarquistas, repressão essa que reduz a resistência a uma dimensão “individual”, mas que não cessam, por exemplo, as sabotagens nos principais grandes portos do Norte como o de Hamburgo. Entre essas atividades de resistência, sem dúvida com dimensões bastante reduzidas, porém, em qualquer caso importantes e interessantes, há que recordar a figura de Fritz Scherer, responsável pelo chamado Bakuninhütte (“Refúgio Bakunin” em tradução livre) nos anos vinte (se trata de um refúgio numa região de montanha construído e mantido pelos anarquistas de Meiningen, uma pequena cidade da Turíngia; ver artigo no Tierra y Libertad, nº 323, Junho de 2015). Durante o regime nazista, Scherer foi deixado (mais ou menos) ‘tranquilo’ pela Gestapo, por na ocasião ser bombeiro na capital alemã. Assim, ajudou como pode seus companheiros em dificuldade além de difundir material antifascista e libertário na região. Entre outras coisas, consegue salvar da fúria do 3º Reich e da destruição da 2ª Guerra Mundial, muitos livros, jornais e folhetos anarquistas, mudando os títulos por outros nada suspeitos politicamente. Os livros e panfletos salvos e guardados por Scherer serão lidos, reeditados e republicados pelas novas gerações de militantes e ativistas anarquistas surgidos com a experiência do 68 alemão.

Fora da Alemanha (1933-1945) na Espanha, França, Polônia, etc:

A FAUD, desde a primeira metade dos anos trinta, acompanha com muito interesse o desenvolvimento do movimento operário espanhol e da CNT (Confederação Nacional do Trabalho). Em 1932, alguns militantes das Schwarze Scharen, perseguidos pela polícia nazista, se refugiam não por casualidade na Espanha. As fileiras do anarco-sindicalismo alemão no exílio engrossam desde o começo de 1933, enquanto que em 1934 se funda em Barcelona o grupo DAS (Deutsche Anarcho-Syndikalisten – Anarcossindicalistas Alemães), que passa a produzir um periódico/jornal próprio. O grupo participa nos combates em Barcelona em Julho de 1936, tomando de assalto o Club Alemán, um importante e conhecido ponto de referencia de adeptos do regime nazista na cidade de Condal. Posteriormente, encontraremos militantes anarquistas em várias experiências da Revolução espanhola.

O grupo “Erich Mühsam” combate no front de Huesca, outros militantes alemães formam parte da “Columna Durruti” e há militantes como a Etta Federn que atua no grupo das Mujeres Libres e em escolas libertárias. Com a vitória de Franco, os anarquistas alemães novamente se espalham: alguns iniciarão uma jornada longa e penosa pelos campos de concentração na Europa central (tanto os criados pelo governo francês para os veteranos e ex-combatentes da Espanha, como, obviamente, os criados pelos nazistas), outros tomarão parte na resistência francesa, como o ex-membro da Schwarze Scharen, Paul Czakon, ou na resistência polonesa, como Alfons Pilarski, fundador da primeira Schwarze Scharen (em Ratibor), onde na ocasião é gravemente ferido nos combates do Levante do Gueto de Varsóvia em 1944.

Este é o período de mais difícil definição. Simplificando: podemos dizer que são os elementos da juventude, apesar de serem doutrinados e enquadrados pelas instituições do regime nazista (como as Juventudes Hitleristas), que no final dos anos 30 se rebelam contra o regime, chegando em alguns casos numa resistência aberta. Quero ressaltar de modo particular, que esses elementos saíram de um ambiente “obrero” [de trabalhadores], tais como os Edelweisspiraten (Piratas de Edelweiss), da Alemanha Ocidental (especialmente em cidades como Colônia, Wuppertal, Essen, Frankfurt, etc.) e as Meuten (Turbas) de Leipzig.

Dentro desses grupos de jovens, haviam presenças anarquistas: o grupo dos Edelweisspiraten de Wuppertal, por exemplo, contava entre seus membros com antigos componentes das Schwarze Scharen como Hans Schmitz (que narrará sua experiência no livro “Umsoust Is Dat Nie”), assim como nas Meuten onde a presença libertária fora recentemente descoberta (primeiramente o grupo havia sido considerado de tendência comunista), como a da Irmã Götze, irmã de Ferdinand, que depois irá para a Espanha.

O anarquismo alemão é uma longa resistência e, sobretudo, sem fronteiras. Como o mundo por qual lutamos.

Por: D. Bernardini. Publicado originalmente no jornal anarquista “Tierra y Libertad”, nº 339 e traduzido para o português por Tércio Miranda em Agosto de 2017.

NOTA:
Para além da consulta do Tierra y Libertad, nº 323 de Junho de 2015, há este artigo [em português] da revista online espanhola “Abordaxe” sobre a Bakuninhütte, o refúgio clandestino criado pelo grupo que adere a FAUD alemã nos anos 30: https://abordaxe.wordpress.com/2015/07/15/alemanha-bakuninhutte-um-refugio-libertario/