A partir dessa semana vamos publicar entrevistas com coletivos, projetos e iniciativas libertárias de diversas partes, com a proposta de divulgar diferentes experiências de ação, organização e vivência que possam inspirar e contribuir para que outras tantas surjam e germinem.
Começamos com essa entrevista linda com o projeto Vivência na Aldeia, do litoral de SP, sobre como tem sido esses anos de organização coletiva com as comunidades indígenas da região, e as trocas, conhecimentos e relações que se criaram a partir disso.
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anarcopunk.org – Contem um pouco sobre o que é a Vivência na Aldeia, como e com quais motivações começou o projeto!
vivencia na aldeia – Na região do litoral sul de São Paulo sempre houve uma luta bastante forte em relação a resistência dos povos guarani e tupi guarani, a sua luta pela terra e pela cultura. Aqui, próximo a nós, houve uma luta muito longa pela retomada da Terra Indígena Piaçaguera e com a necessidade de ocupação dos quase 3000 hectares de terra houve a necessidade de uma distribuição das aldeias por toda terra para que pudessem cuidar melhor dela e coibir invasores e destruidores das matas e águas. Assim, fomos convidados para conhecer uma nova aldeia que estava se formando e que tinha o propósito de, além de cuidar da terra, retomar e fortalecer a cultura tupi guarani.
A aldeia estava realmente em sua fase inicial, as famílias estavam morando em um quartinho em ruínas, que tinha somente metade do teto coberto e que tinha sido abandonado por uma mineradora clandestina. As crianças e as pessoas mais velhas dormiam na parte coberta e o restante dormia ao relento, muitas vezes sob chuva.
Foi incrível este primeiro contato, permitimos nos conhecer mais, ouvimos sobre seus sonhos e a construção da aldeia Tabaçu Rekoypy, ouviram nossas histórias e quando falamos sobre o nosso conhecimento com técnicas de bioconstrução e a experiência em organizar eventos foi como um grande estalo: Por que não organizarmos de forma coletiva o inicio da construção das casas usando técnicas de bioconstrução? Por que não organizamos eventos onde as pessoas possam aprender estas técnicas? Por que não mesclamos tudo isso com o conhecimento ancestral indígena e sua cultura? A resposta não poderia ser outra, SIM, vamos fazer tudo isso.
Tudo foi muito inspirador e em alguns dias fomos construindo a ideia e como tudo seria organizado, levando sempre em conta alguns princípios básicos como: decisões por consenso, horizontalidade nas relações e respeito.
Assim surgiu a Vivência na Aldeia, um projeto sem fins lucrativos, que visa a organização de eventos com as comunidades indígenas de acordo com seus desejos e necessidades.
anarcopunk.org – Como é a participação dxs indígenas na realização e construção das atividades?
vivencia na aldeia – A Vivência na Aldeia é sobre as comunidades indígenas, então tudo passa pela comunidade. É a comunidade quem decide quando terá a Vivência, o que está precisando ser construindo, desde moradia, casas de cultura, casas de reza, museus, vivências culturais, cursos específicos com temas que tenham ligação com a cultura ou que tragam benefícios para as aldeias.
Após estas decisões, organizamos de forma coletiva as estratégias para colocar tudo para funcionar, quanto custará e como conseguir este valor, normalmente fazemos a soma de todo o custo e dividimos por um número estimado de participantes e chegamos a um valor de participação. Após isto definimos o evento em si, o conteúdo, o cardápio (sempre vegano por ética, por ser inclusivo, de menor valor e ser uma alimentação que se aproxima com a alimentação dos antigos por conter muitas raízes), dividimos as tarefas e começamos a preparar tudo. A participação é em tudo, desde a idealização até a realização.
anarcopunk.org – Para além dos dias de evento, falem sobre a relação que foi sendo criada entre vocês e as comunidades das aldeias. Como tem sido essa troca?
vivencia na aldeia – No começo, lá em 2013, tudo era bem tímido, sentíamos o cuidado que tínhamos com todas as pessoas, nós com a comunidade e a comunidade com a gente. Procurávamos conversar sobre todos os assuntos sem criar tabus e decidimos de forma coletiva que não deixássemos qualquer dúvida ou mal estar sem ser conversado. O primeiro contato sempre é delicado, pois estamos conhecendo o jeito das pessoas e para manter isso vivo até hoje, sabemos que temos que sempre estar cuidando dessas relações. Temos um combinado na organização da Vivência na Aldeia, que quando uma pessoa tem uma mágoa, ou algo que foi feito que ficou chateada com alguém, tem que ser conversando rápido para que ninguém fique com o “coração dodói” e que possamos seguir sempre unidas. Esse combinado partiu de um dos indígenas que queria conversar sobre algo mais delicado e usou esse termo “coração dodói” que nos tocou muito. Agora seguimos assim, cuidando do coração de todas as pessoas ali.
Com o passar do tempo, entre reuniões, atividades festivas, Vivências, tudo foi mudando bastante, começamos a conversar sobre diversos assuntos, sobre coisas que iam além da luta indígena, além da organização das Vivências, além do trabalho que desenvolvíamos de forma coletiva. Uma amizade muito bonita estava nascendo entre nós e um dia, com o anuncio do nascimento da próxima criança na aldeia, fomos convidados para ser txangarás (padrinho e madrinha) do hoje Ithan Dju, uma criança linda que insiste em andar antes de engatinhar e que na verdade já quer correr antes mesmo de conseguir ficar em pé sozinho com as próprias pernas. A partir deste momento sempre nos apresentam como parte da família e como fundadores, junto com a comunidade, pois estávamos desde o começo neste aldeamento, a Aldeia Awa Porungawa Dju.
Além da relação com o Ithan Dju, a relação com toda a comunidade e com as crianças a cada dia fica mais intensa e apaixonante, gerando muitos sorrisos, brincadeiras e inspiração.
anarcopunk.org – A cultura indígena é muitas vezes tratada como algo “primitivo” ou “inferior” numa suposta “evolução” onde o topo é a civilização ocidental capitalista, a responsável pelo extermínio e destruição de inúmeros povos nativos mundo afora. Manter suas culturas vivas em meio a esse contexto etnocida é um ato de extrema resistência. Quais tem sido as principais demandas e urgências nas aldeias em que vocês estão convivendo?
vivencia na aldeia – A principal luta é pela terra e pelo resgate cultural. O modo de vida ocidental é uma avalanche. Indígenas sabem que o resultado desse modo de vida será a destruição do nosso planeta, seja da natureza e dos povos nativos e por isso indígenas lutam para cuidar das águas e do máximo de floresta que conseguirem. Sabem que é uma luta muito difícil, mas isso só fortalece, pois entendem que precisam estar mantendo a cultura viva, passar todo o conhecimento para as crianças e aos mais jovens, além de estar registrando essa história para que ela não morra.
Para esta luta é necessário estarem fortes, politicamente e culturalmente e por isso há um empenho muito grande de resgate cultural, para manter a língua viva, os costumes, a moradia em casas tradicionais e sua espiritualidade.
anarcopunk.org – Quais tem sido os maiores aprendizados de vocês durante esses anos de intenso contato com as sabedorias milenares desses povos?
vivencia na aldeia – Os aprendizados são inúmeros, a cada dia que estamos convivendo nas Aldeias, a gente aprende algo mais.
Aprendemos que o tempo faz parte do processo, que temos que passar por todos eles e viver aquele presente intensamente. Entender que o trabalho precisa estar sempre aliado a diversão, que o trabalho não é em si um trabalho, mas um compartilhar de ideias e sonhos concretizados. Respeitar as formas diferentes de pensar, agir e o tempo de cada pessoa, o tempo da natureza e entender que estes tempos vão estar sempre ligados e que tentar mudar isso é tão opressor quanto o sistema que odiamos.
Ali, na Aldeia, cada pessoa apenas é e sente ao seu modo, não existe nenhum pré julgamento. Não importa o jeito, a roupa, o jeito de falar, o que sabe e o que não sabe, o que viveu e o que não viveu. Cada pessoa ali é tão importante como qualquer outra. Estar ali é esquecer todos os rótulos, é esquecer tudo o que sabe para se renovar e apenas trocar, de igual pra igual, cada saber que aparecer, seja de uma criança ou de uma pessoa mais velha.
Um dia estávamos em uma aldeia no litoral norte de São Paulo, dentro de uma casa de reza e o Pajé, em meio a diversos assuntos, nos disse que ninguém jamais agradará todo mundo e que devemos seguir a nossa vida da forma mais verdadeira, sempre fazendo com o coração…
anarcopunk.org – Quais os próximos planos e projetos?
vivencia na aldeia – Bem, o plano é continuar neste apoio as necessidades das aldeias. O projeto se tornou conhecido entre aldeias de diversos lugares e por não ser um projeto fixo, ser nômade, acreditamos que devemos alçar voos, estar com outras etnias também, onde houver necessidade do que podemos oferecer. E de qualquer forma, queremos aprender mais, estar mais em contato com a terra e com o sorriso dessas pessoas quando cantam, dançam e quando veem sua cultura resistindo.
anarcopunk.org – Valeu queridxs! Fica aqui um espaço para deixarem contatos e meios de comunicação com o projeto!
vivencia na aldeia – Poxa, valeu demais a você, agradecemos demais pelo espaço onde podemos tentar mostrar um pouco deste projeto. Atualmente vivemos em um mundo onde as pessoas não querem ouvir ninguém, pois tem certeza que já sabem de tudo e preferem se anular em seus mundos com todas as certezas e medos de se permitir conhecer e entender que existem muitos mundos diferentes. O melhor de tudo é sermos diferentes, pois a natureza é assim, cada ser tem seu jeito, cada arvore seus galhos, cada pessoa é um universo. Não respeitar isto é tão opressor quanto a opressão que lutamos contra. Sites do projeto: http://vivencianaaldeia.org e http://cultiveresistencia.org
Anarquia, Saúde e Resistência.