Anarcopunks, por Comuna Goulai Pole

“Aquilo que vem ao mundo para nada perturbar  não merece respeito nem paciência” René Char

Anarco-Punks

Na maioria das vezes, o que se espera de um texto sobre Punks são aquelas velhas e mesmas informações sobre sua origem na Inglaterra, em 77, com os Sex Pistols (na verdade eles estavam mais para $ex Pistol$), as curiosidades de personagens polêmicas que acabaram virando grandes mitos, idolatrados por muitos e rendendo um bom dinheiro para a indústria cultural, blá, blá, blá… Pretendemos poupa-lxs disso, pois esta história contada pelos meios de comunicação de massa serve apenas para deturpar, enlatar e depois vender um modelo massificado de “punk”, sem essência nem raiz. Acreditamos que não se pode determinar a origem geográfica dx Punk. Surgiram, no início da década de 1970, grupos de jovens que já podem ser identificados como Punks em localidades diferentes, tanto no Reino Unido como nos EUA. Se não há um fato ou registro que determine a data ou local de seu nascimento, tampouco pode-se utilizar como marco a criação de uma banda ou zine. O que caracterizava essxs jovens como Punks era seu comportamento rudimentar e cru, a apropriação de objetos que eram considerados como lixo pela sociedade consumista/capitalista e a utilização de expressões e símbolos que destoavam do comportamento padrão. A violência, de que freqüentemente eram vítimas, foi adotada como resposta a um modelo de sociedade que xs excluía e da qual não mais queriam fazer parte. O estigma de violento, vagabundo, drogado… acabou marcando os primeiros tempos do movimento. Da mesma forma que adotaram um comportamento próprio, também criaram expressões artísticas particulares. A vestimenta servia para expressar no próprio corpo o que sentiam, por meio de simbologias como o lixo, a miséria, a prostituição, a androginia, a sexualidade reprimida. Ao utilizarem aspectos visualmente chocantes e agressivos, recusaram a uniformização e a moda, valorizando o indivíduo, seu livre desenvolvimento cultural e político, a orientação sexual, a espontaneidade, a criatividade e um ferrenho combate ao autoritarismo. Oriundos da classe trabalhadora ou de desempregadxs, xs Punks buscaram meios de sobreviver numa civilização dominada pela indústria. No entanto, suas perspectivas de integração à sociedade, ou simplesmente ao mercado de trabalho, sempre foram praticamente inexistentes.

Realmente, xs Punks continuaram pobres e vivendo com a insegurança de sempre, no entanto, encontraram formas originais e não rotineiras de passar os dias. Em resposta à marginalização e à exclusão, muitxs passaram a expropriar, outrxs optaram pela mendicância e pelo aproveitamento dos desperdícios e houve aquelxs que optaram pela vivência comunitária, o trabalho cooperativo e a mudança revolucionária. Especificamente no caso das mulheres, elas assumiram uma estética considerada socialmente imoral, muito semelhante às prostitutas, isso porque além de chocante, era a realidade de várias delas. Atualmente, a participação das mulheres no meio Punk vai muito além de namoro com outros Punks ou como simples espectadoras. Pelo fato de existir uma predominância masculina, as mulheres tiveram de conquistar voz ativa dentro do movimento, assumindo uma postura muitas vezes mais coesa que a dos homens. Na comunicação foram criados vários meios e expressões alternativos: bandas (sem esse negócio de fã), os pontos de encontro (muitas vezes as gigs), os zines. Por considerar que a comunicação de massa exerce uma verdadeira ditadura ideológica, proliferaram os zines como canais próprios para a divulgação de eventos, bandas, manifestos, idéias, debates, etc. A leitura dos zines é a melhor forma de conhecer o movimento anarco-punk, pois lá podem ser encontrados os posicionamentos individuais ou dos grupos, sem distorções ou sensacionalismos. Enfim, é o espaço em que podem falar tudo o que pensam. E essas produções independentes deram origem ao Faça Você Mesma, ampliando a noção de apoio mútuo anticapitalista e de uma arte não voltada para o lucro. Nunca houve um congresso ou coisa do tipo que determinasse o que é Punk. Dois fatores permitem xs Punks se identificar como integrantes de um movimento: a aproximação dos indivíduos por meio da afinidade de idéias e a construção de meios que viabilizem a prática de seus propósitos por meio de produções artísticas independentes. Esses dois elementos formaram-se espontaneamente, conforme foram sendo adotados certos valores de contestação a um sistema que fere a todos. Portanto, estes princípios não podem ser confundidos com regras impostas que visam a homogeneização dxs indivíduxs, mas, ao contrário, preservam a diversidade e a valorizam como fator essencial. Essa flexibilidade proporciona uma grande diversidade, com o surgimento de diversos grupos e tendências.

Nós, anarco-punks

No início, o movimento Punk possuía predominantemente um caráter niilista, não propunha nenhuma transformação social, almejando apenas a destruição da sociedade existente com seus valores e verdades absolutas. Mas, ao mesmo tempo, já havia aquelxs que, em função das experiências vividas, adotaram propostas de transformação social baseadas no anarquismo. Começou, então, uma maior preocupação com a estruturação dos grupos, com o embasamento teórico, a efetividade prática dos trabalhos e desenvolvimento de atividades políticas com outros grupos e organizações sociais. À medida que o tempo passou, xs rebeldes compreenderam mais a sua causa, passando a enxergar que realmente não há futuro, a não ser se nós construirmos um. Se você não faz nada para mudar, é parte do problema! (Crass). Por isso, aquelxs que se aproximaram mais das propostas anarquistas eliminaram o ceticismo absoluto e a ânsia de destruição, buscando criar algo novo! “Tudo o que x Punk destruir será reerguido com honestidade”, dizia o zine Atitude Anarquista, em 1982.
O movimento Punk não se assume, no entanto, como movimento político na concepção tradicional, mas sim de contestação contracultural. Tampouco se pode afirmar que é um movimento apolítico. Suas propostas dizem respeito mais diretamente aos costumes, comportamentos, vivência e às relações interpessoais, e sem o anarquismo como base política não apresenta propostas de funcionamento socioeconômico. Anarco-Punk luta pela causa anarquista a sua maneira. Na nossa concepção, política e cultura caminham juntas. Geralmente, no trabalho político, a intervenção social é realizada pela cultura. O “faça você mesma” é a expressão Punk de autogestão. As iniciativas auto-suficientes que não visam lucro são uma clara rejeição ao sistema capitalista. A preocupação com o estabelecimento de relações onde se busca o respeito mútuo entre o indivíduo e o coletivo são práticas libertárias e antiautoritárias. Acreditamos, também, que uma cultura de contestação desligada de uma ideologia política é facilmente assimilada como produto de consumo ou é deturpada. Como aconteceu com xs hippies, que se desmancharam em moda, e os skinheads, que se generalizaram como movimento de extrema-direita. Em todo o mundo, xs anarco-punks desenvolvem trabalhos em diversas áreas sociais. No Uruguai e na Venezuela há uma forte intervenção no movimento estudantil. Na Espanha há um forte movimento de okupas, insubmissxs e até mesmo na CNT. No México, desenvolvem militância sindical e apoio à FZLN. Na Argentina, tratam das questões militares, ecológicas e participam de expressões populares como o carnaval (que é diferente do nosso). No Brasil, muitas pessoas acham que xs anarco-punks surgiram depois dos anos 90. No entanto, em 87, a banda “Disunidos”, de João Pessoa/PB, já se assumia como tal. O Movimento Anarco-Punk (M.A.P. – sigla adotada no início dos grupos), ainda que com dificuldades para a sua estruturação, adquiriu caráter nacional com o tempo. Atualmente, busca uma base mais segura e meios mais práticos para a sua atuação, com respaldo e reconhecimento dos próprios movimentos sociais, principalmente homossexual, anti-racista e nos Comitês de Solidariedade às Comunidades Zapatistas. A ligação do anarquismo com o Punk aqui no Brasil veio acentuar a crescente tendência de politização. O movimento Anarco-Punk busca uma atuação radical e organizada junto aos diversos setores sociais, de forma federativa. O Punk se propõe a sair do gueto e tornar públicas suas propostas. Surgem diversos coletivos em São Paulo que trabalham com temas específicos, como o ACR (Anarquistas Contra o Racismo), que apesar de não ser uma organização especificamente Punk, surge deste meio, Coletivo Altruísta, CAPA (Coletivo de Ação Punk Anarquista), KRAP (Koletivo de Resistência Anarco Punk), Cooperativa Roj@s de Rabia, Unhas e Dentes, só para citar alguns, além de publicações como: La Insumisión, Persona non Grata, Ato Punk, Favo de Fel, WCB Protest, Rancore, Iconoclasta, etc… e bandas: Pós-Guerra, Ira dos Corvos, Rebeldia, Castitate Sociale, Vala Negra, Metropolixo, Execradores, Sinfonia de Cachorro, Combate Social (Santos)… Afinal, anarco-punk é x Punk que adotou as idéias anarquistas, ou x anarquista que identificou-se culturalmente com o Punk? Genericamente, não se pode afirmar nem um nem outro. Pois não somos metade um e metade outro, somos a unidade de duas ideologias libertárias/antiautoritárias, uma com aspectos culturais e outra com bases essencialmente políticas. Enfim, não somos a vanguarda Punk porque não somos uma tendência Punk superior ou mais avançada que as outras, nem a retaguarda anarquista, pois não somos doutrinados ou usados por uma vanguarda intelectual anarquista. Aliás, somos muitas vezes e em muitas localidades rechaçados preconceituosamente por esta vanguarda, de forma muito semelhante ao rechaço e à falta de apoio teórico que sofreram os camponeses makhnovistas, como relata “A História do Movimento Makhnovista”. Somos apenas nós mesmxs, pois temos uma interpretação e uma prática do anarquismo que nos são próprias, muito diferente dos convencionais, e isso incomoda muita gente!!!

Esse texto foi produzido por membros da comunidade anarco-punk Goulai Polé.
 
* * * Revista Libertárias n°5 – dezembro de 1999 – “Inominável”