A última postagem no blog foi um relato de uma garota de Sidney/Austrália, que contou sobre suas experiências e reflexões como facilitadora em um processo de responsabilização que aconteceu como resposta coletiva a um estupro em uma comunidade ativista em 2004. O relato a seguir, são as reflexões da própria sobrevivente sobre todo o processo, inicialmente proposto por ela e do qual teve participação ativa até o final.
Todas estas experiências de apoio coletivo às sobreviventes e responsabilização de agressores, que aos poucos vamos encontrando em zines e materiais do mundo todo, são contribuições para que se pense em formas reais e coletivas de ação, levando a sério o problema e saindo definitivamente das tão comuns ações de esquecimento, falta de apoio à sobreviventes, ou argumentos de que “pessoas mudam” sem que nada coletivo seja realmente feito para que exista qualquer mudança real. Idéias para que possamos analisar, refletir, e com todo este acúmulo colocar em prática nossas próprias formas de, não só tratar de questões como responsabilização, mas também levar adiante formas de combate ao machismo em nossas comunidades que efetivamente façam com que nunca mais ocorram novas agressões e abusos. Chega de jogar tudo pra debaixo do tapete!
Boa leitura!
* Tradução feita a partir do zine What Do We Do When #2.
CONFRONTANDO ESTUPRO SEM O ESTADO
Dois anos atrás eu fui estuprada por um ex-amante muito recente. Alguém em quem confiei, me tornei íntima, compartilhei minhas histórias, minha vida e meus sonhos. Quando identifiquei sua violência como estupro, meu senso de realidade foi destruído. Minha vida parecia tão distorcida… Eu não sabia como reagir, ou o que fazer.
Escolhi recolher os pedaços, e procurei encontrar meu próprio senso de justiça. Encontrei uma força interior que não sabia que existia. Este pequeno escrito fala sobre essa luta, minhas escolhas e minha jornada para me empoderar após uma violação tão profunda.
Esta história é também sobre um processo de comunidade, um processo de cura, para encontrar justiça, nos apoiarmos umas às outras, lidar com a violência sexual que havia ocorrido… a tentativa da comunidade de não ignorar a situação, como tão comumente acontece.
Neste contexto, quando eu falo de comunidade, falo sobre um grupo de 14 mulheres e um homem, que eram amigxs e com xs quais trabalhei politicamente. Escolhi essas pessoas para que fossem parte do processo coletivo porque confiava nelas, porque respeitava suas políticas. Foi importante que eu visse estas pessoas confrontando a realidade de meu estupro por parte deste homem, que era também um amigo para muitas delas.
Escrevendo isso eu reconheço que é a minha experiência, e não necessariamente a dxs amigxs envolvidxs neste processo. Eu uso as palavras comunidade, grupo e amigxs indistintamente.
Teve muita coisa que não pude relatar neste artigo, e muito que eu provavelmente esqueci e simplesmente não sei por onde começar. Estou escrevendo isto pelo menos para iniciar um dialogo que se direcione a mudanças. Na melhor das hipóteses irá ajudar outras comunidades em suas lutas contra a violência sexual e criação de mudanças.
Falando
Uma das comunidades em que estou envolvida é uma comunidade onde a violência sexual é reconhecida ao menos no senso teórico, como a violação de uma pessoa, como um crime frequentemente cometido por homens (ainda que não inteiramente) contra mulheres. É minha análise que isto ocorre dentro de uma opressão sistêmica contra mulheres, que mantem gênero e outras relações de poder.
Eu vivo entre anarquistas, esquerdistas, queers, street reclaimers, punks, feministas, vegans, okupas… pessoas que veem a discordância como uma identidade principal. Mas elxs estão prontxs para discordar de algo tão próximo de casa?
Minha decisão inicial foi contar apenas para poucxs amigxs próximxs sobre o estupro. Isto devido a algumas razões principais: eu estava amedrontada com a resposta do perpetrador, sentia culpa de que ele tivesse que encarar uma saída, tinha medo de que as pessoas não acreditassem em mim, e com medo da possível complacência das pessoas. Depois de viajar por três meses após o estupro, eu sabia que teria que ir pra casa e lidar com isso. Eu estava deprimida e ansiosa, e sabia que não poderia viver em minha comunidade sem falar sobre isso. Eu não queria me mudar porque precisava do apoio dxs amigxs.
Quando contei a elxs sobre o estupro, perguntei se também confrontariam isso. Que a violência fosse reconhecida pelo que era. Que este estupro não fosse jogado para debaixo do tapete, como foi com tantas experiências de mulheres quando elas decidiram vir a público.
Isto era importante para mim. Senti que precisava disso para me sentir respeitada e segura… e assim ter minha humanidade restaurada. Eu não confio no sistema de justiça criminal para me dar justiça real. Sei que apenas perpetua a sociedade misógina e patriarcal em que vivemos. Não estava preparada para me colocar em um processo onde teria que provar que fui violada. Não estava preparada para ser ainda mais rebaixada por um sistema policial misógino, que iria questionar porque eu estava na cama com ele. Não estava preparada para dar a eles a oportunidade de me fazer virar mais uma estatística. Relatar este crime para a policia seria ter uma validação insignificante.
Uma comunidade confronta a violência sexual
O processo em que estávamos para embarcar foi, ao menos, uma rejeição ao sistema judiciário estatal e criminal. Queríamos tentar encontrar nossas próprias soluções.
Existe a ideia em geral de que as pessoas merecem oportunidades para se redimirem, e que uma comunidade tem a responsabilidade de tentar trabalhar com os autores de estupro, vendo-os como mais do que um estuprador. Para mim, trata-se de reconhecer o estupro como um comportamento que não irá embora afastando nossas vidas dos “homens maus”. Precisamos procurar coletivamente soluções para lidar com a violência perpetrada contra mulheres.
Eu sei que algumas pessoas, inclusive eu, lutaram com essas ideias. O quadro com que trabalhamos também tinha a crença de que pessoas mudam seus comportamentos ruins.
Discussões sobre o que a justiça parecia não progrediram para muito além, e ficamos sem “soluções”. Decidimos que o agressor deveria ser confrontado por seus comportamentos, e ser responsabilizado junto à comunidade num nível mais amplo. Isto resultou em um grande encontro com o agressor, pessoas que ele decidiu chamar, e xs amigxs que chamei. A base para esta ideia foi inspirada pelo modelo de justiça restaurativa, embora não inteiramente. Isto surgiu por duas razões principais, reconhecíamos que a justiça restaurativa não seria apropriada para nossas necessidades, e ela também é um processo contínuo do qual o autor do crime não pode fazer parte se for deixar a localidade.
O grupo de 13 se reduziu para 9 com o passar do tempo, porque algumas pessoas foram pra longe, e para outras pessoas o processo trouxe muito de suas próprias histórias e levou-as a sentir que não queriam estar envolvidas. No início xs amigxs em sua maioria apenas me ouviram, e perguntaram que tipo de apoio poderiam me dar. Minha reivindicação principal era que o agressor fosse confrontado, e que não fosse aceito em espaços onde eu estava ou estaria. Algumas pessoas se sentiram mais confortáveis do que outras para confrontá-lo pessoalmente… embora todas se comprometeram a pedir que ele fosse embora se chegasse em espaços onde eu escolhi estar. Isto aconteceu uma vez até onde sei.
Este foi um importante reconhecimento para mim, do abuso que eu passei e da forma com que continuaria afetando minha vida. Acredito que eu tinha o direito de me sentir segura e confortável, e como ele tinha escolhido usar a violência para me fazer sentir insegura, eu poderia escolher que ele não pudesse participar de espaços onde eu estivesse. Estas escolhas me fizeram sentir segura, e sou grata por ter tido acesso a um apoio significativo como esse.
Senti que a ideia de punição nunca foi realmente explorada, e olhando para trás acredito que deveríamos, e eu gostaria de tê-lo feito. Senti naquele início que existia um conjunto de coisas e que a punição não estava em nossos ideais, e que não deveria ser explorada.
Acho que vivendo em um espaço de convicções vagas de não opressão e não hierarquia, as pessoas encontram uma concepção complicada de si mesmas com este poder. Me sinto de certa forma pega por isso, e não falei sobre ainda.
O poder do apoio
Como resultado de ir a público e exigir que as pessoas lidassem com este abuso, fui apoiada por meu pequeno grupo de amigxs, e a comunidade mais ampla. As pessoas amigas fizeram disso uma prioridade em suas vidas, para criar espaço para lidar com isso e frequentar reuniões. Eu vi um apoio mais geral de amigxs fora deste grupo, e respondendo a nossas reuniões. Acho que a maior parte do apoio emocional veio de fora do grupo, o que penso que também aconteceu para outras.
Como resultado deste processo, minhas amizades, como um todo, se fortificaram. Criei alguns vínculos incríveis, e fiz novxs amigxs. Me senti incrivelmente valorizada em minha comunidade, e tratada enquanto uma “sobrevivente” de violência sexual. Isso quis dizer, às vezes, colocar um grande esforço em algumas de minhas amizades mais próximas, enquanto lutamos para lidar com as tensões crescentes, conflitando ideias e sentimentos diferentes.
Algumas das pessoas amigas tiveram suas próprias experiências, e tiveram menos apoio do que eu, procurando confrontar a violência sexual de sua forma incrivelmente desafiadora.
Encontrando necessidades emocionais
Senti que nos focamos principalmente em resultados e processo, mais do que nos permitir sentir emoções. Acho que a separação das emoções de uma resposta prática foi problemática, mas isso se origina do fato de a maioria das pessoas não saber como lidar com suas próprias emoções, quanto mais apoiar outras pessoas coletivamente. Acho que as pessoas tentaram lidar com as emoções que surgiram, mas não era um aspecto predominante. Olhando para trás, acho que uma pessoa externa facilitadora com habilidades em apoio de grupo teria sido realmente útil.
Acho que o grupo não foi muito exitoso em encontrar as necessidades das pessoas dentro disso. Uma de minhas amigas em particular falou da forma com que seu próprio abuso foi impactante para ela nesta situação. Ela falou do sentimento de que muitas pessoas apoiavam da boca pra fora, e que não tinha apoio real. Eu acho, olhando mais uma vez para trás, que as pessoas não sabem como responder, ou como apoiar alguém.
Eu também me senti muito sozinha nestes espaços algumas vezes. Foi difícil ser a única pessoa com raiva, machucada, triste, traída… a única vítima “direta” nisso tudo. Embora xs amigxs tenham sido afetadxs, desejei que tivessem uma resposta forte. Quis desesperadamente ser mais uma integrante da comunidade… que sentisse que tinha umas as outras, e sua dor era similar. Ninguém sentiu minha dor como eu, e eu desesperadamente queria isso.
Pensando agora, acredito que isso tinha muito a ver com o fato de não me sentir confortável em expressar minha própria raiva, e desejar um espaço coletivo para me sentir confortável para fazer isso. Isto é algo que agora acredito que também teria sido realmente importante, mas algo que nenhuma de nós percebeu. Das conversas que tive com pessoas fora das reuniões, acho que não fui a única lutando com minha raiva.
Entretanto, acredito que esta experiência fortificou a habilidade de minha comunidade em responder a estas outras necessidades. Isto aconteceu mais numa base de uma pessoa para outra, do que coletivamente. Sei que algumas pessoas se sentiram um pouco alienadas pelo processo coletivo, o que também as levaram a sair do grupo.
Respostas negativas
Embora eu não me arrependa de ter me aberto sobre o estupro em um senso político, também recebi reações negativas.
Eu nunca soube “quem sabia” e “quem não”. Também nunca soube se os olhares de simpatia que recebi de pessoas quando fui a eventos era imaginário ou real. Nunca soube o que as pessoas falavam sobre mim, embora soubesse que havia rumores rolando. Fiquei com raiva de ser vista como uma “vítima”.
Eu estava aberta a ser exposta como sendo a vítima em qualquer hora e qualquer lugar. Uma vez houve uma mulher que me confrontou na noite dyke em um bar local, e perguntou “Eu sei que isso é meio estranho, mas você é a XXX, que o XXX estuprou?”. Isto aconteceu numa época em que eu estava começando a me ver como mais do que uma vítima. Me senti obrigada a falar para ela sobre minhas experiências, embora eu quisesse me afundar no chão.
Algumas pessoas me conheceram por meio de minha experiência de ter sido estuprada. Ironicamente, fiz algumas boas amizades neste processo, embora me sentisse um pouco estranha em ser encarada como “aquela que declarou o estupro e estava tentando lidar com isso de uma forma radical”. Foi a primeira vez que a maior parte das pessoas da comunidade “radical” de Sydney ouviu sobre um processo assim acontecendo.
Autonomia e controle
O grupo me deu muito controle, autonomia e decisão dentro dele, o que gerou um forte sentimento de empoderamento. Acho que esta opção, embora não verbalizada, veio de um respeito de mim enquanto sobrevivente de violência. Onde minhas escolhas e poder foram corroídos pelo estupro, o grupo tentou reinstaurar este poder em todas as situações que pudessem ocorrer neste processo de justiça.
Como eu disse, controle e domínio foram uma parte importante de meu processo de empoderamento, embora no decorrer do tempo tenham sido tão instrumentalmente envolvidos o esgotamento, a dificuldade e a frustração.
Havia uma expectativa não falada de que eu reuniria o grupo. E reunir o grupo em particular colocava uma enorme pressão sobre mim, que não tinha percebido completamente até então. Em essência significava que eu tinha muita responsabilidade para que esse processo ocorresse. Ao mesmo tempo em que isso era de alguma forma empoderador, também era incrivelmente esgotante, em um momento em que eu também precisava me focar em meu próprio processo de cura.
Meus conflitos internos
Algumas vezes sentia muita culpa que xs amigxs tivessem que passar por isso, tivessem que suportar este processo. Eu olhava para o quão cansadxs estavam e às vezes desejava que tivesse guardado “meu segredo podre”. Eu fui perceber após muito trabalho comigo mesma, que estes sentimentos eram parte da culpa que muitas pessoas que passaram por violência sexual sentem.
A luta para pensar no agressor como alguém que merecia apoio e uma “segunda chance” era incrivelmente desafiadora. Tenho amigxs que estavam em meu circulo de apoio e também optaram por ter algum nível de comunicação com ele. Me senti em conflito; pensava teoricamente que ele precisava de oportunidades para falar honestamente, embora sentisse desprezo e vingança. Nos dias ruins me deixei sentir frustrada, brava, triste e traída. Por vezes sendo capaz de separar meu sofrimento do que as pessoas pensavam do estupro e de mim, da forma com que as pessoas tratavam ele, me davam uma sensação de força. Porém, por outro lado, ter de pensar sobre estas coisas era desempoderador quando frequentemente punia a mim mesma. Eu tentei pensar politicamente nos meus sentimentos, ao invés de apenas deixa-los existir e me deixar senti-los.
Dizendo estas coisas, quero que se reconheça que ninguém esperou ou me pediu que desse a ele uma segunda chance. Desde o início foi claramente colocado que todxs compreendiam e respeitavam meu direito de não querer nada com ele, nunca mais.
Eu escolhi ser envolvida, escolhi iniciar isso. Queria acreditar desesperadamente na humanidade. Queria acreditar desesperadamente que uma pessoa com quem outrora me importei e que optou por me abusar pudesse mudar. Queria que xs amigxs me respeitassem, embora saiba que eles teriam feito isso de qualquer forma. Eu precisava acreditar que homens são capazes de mudar seus comportamentos. Então, de certa forma eu dei a ele uma segunda chance. Não uma chance de amizade, mas estava preparada para reconhecer sua habilidade de mudar, e agir neste quadro.
Eu também precisava acreditar que existiam alternativas para além das que tínhamos. Esta foi a que achei melhor para nós, em um quadro de não punição. Ao agir neste cenário eu precisei respeitar também seu direito a segurança. Isto foi extremamente difícil de fazer. E é algo que não tenho certeza de acreditar totalmente.
O dia da confrontação coletiva
Fiquei chocada e maravilhada com o senso de empoderamento que senti como resultado. Ser capaz de contar a experiência exatamente como aconteceu para mim, com minha comunidade e ele, foi muito empoderador. Dizer minha memória a ele, olhando nos olhos enquanto expressava tamanha raiva, e tendo as pessoas próximas passando por isso também, me deu um grande senso de poder.
Este dia foi decepcionante em alguns sentidos. Por nunca termos recebido a resposta que esperamos dele. Ele não mostrou nenhum remorso, não expressou mágoa… suas respostas foram extremamente focadas em si mesmo. Senti raiva por ter colocado tanta energia naquele dia e ele não ter tido nenhum respeito real por nós. Ele sequer veio preparado. Embora esta resposta, ou a falta dela, tenham me mostrado que eu precisava lavar minhas mãos com relação a ele. Para finalmente dizer boa viagem e não sentir que estava esquecendo nada. Eu o vi como o homem fraco que é.
Em conclusão…
Como um todo, estou feliz com as decisões que tive. Não fui silenciada. Eu quebrei o silêncio da violência sexual de forma efetiva e muito publicamente, e me senti inspirada de que outras pessoas tenham aceitado o desafio também. Isto me dá muita inspiração para o nosso futuro.
Não estou certa de que tive minha justiça… de alguma forma acho que tive. As vezes fico desapontada, acho que poderíamos ter feito mais. Talvez isto venha da raiva, do sentimento de que ele foi embora muito facilmente, enquanto continuei sofrendo.
Sem o apoio que recebi de minha comunidade e amigxs, minha experiência teria sido muito diferente, e não tenho certeza de que estaria compartilhando ela desta forma. Sei que sou privilegiada em ter tido esta experiência. A violência sexual permanece em todo o mundo, silenciosamente. Mesmo que a fúria e agitação não seja silenciosa, isto tem um impacto em todxs nós de formas muito destrutivas. Isto ainda me deixa muito triste e furiosa.
Eu tenho um profundo amor e respeito pelas pessoas que entraram neste processo comigo… obrigada a todxs, Josie, Karen, Pete, Paul, Chris, Moon, Jason, Noha, John, Lou, Sunil, Jen, Tanya e Annette.