Como acontece com cada okupação, e ainda mais se está pela anarquia, o tempo é uma incerteza. Mas, isso não pode frear esforços e vontades que quebrem a normalidade urbana e cidadã. Já contrárixs ao sistema, dificilmente mediremos nosso passos com relógios ou acúmulo de tempo. Já em contra da dominação, cada ataque ao sistema para nós é uma vitória ganha, mas não aquela vitória do ponto final na guerra. Cada ação feita, cada passo dado fora das celas ordeiras do comportamento normativo que impõe a vida moderna, cada fogo aceso, pedra atirada, regra quebrada, são pequenos triunfos. Cada vez que procuramos a anarquia e fazemos as coisas acontecer ganhamos um pouco da preciosa liberdade. Essas são nossas vitórias.
Entramos incomodando
Ao longo de pouco mais de dois meses okupamos uma casa pertencente à alta burguesia local e os incomodamos certamente. Suas constantes aparições, os esforços que tiveram que fazer para “limpar sua imagem” diante de uma vizinhança que sentia-se afetada pelo abandono do lugar, até o fato deles ter que sair de suas cômodas casas para ir constantemente a nos enxergar, desacreditando que tínhamos tomado “sua” casa foram gratificantes formas de saber que estávamos incomodando aos poderosos de sempre, os donos da cidade faz séculos. E foi atrevido sim.
Rodeados pela Praça Matriz, uma delegacia, o palácio de governo, em pleno coração da materialidade do sistema estatal, okupamos uma propriedade histórica com a aberta confrontação anárquica de espalhar nossas ideias sem amaciá-las, as vezes rodeadxs e constantemente fotografadxs pelos puxa sacos dos donos, conspiramos no meio do monstro. E foi uma ousadia sim.
Sem esperar as melhores condições, sem buscar seguranças absolutas, procuramos o impossível e o fizemos acontecer.
Para quem duvide da força dxs indivíduos, há certamente um antes e um depois da Biblioteca Kaos na rua, no bairro e no entorno. Poucxs e loucxs, mudamos a paisagem do lugar em poucos dias, possibilitamos encontros, debates, conflitos e conspirações sem precisar cabeças nem estruturas verticais para espalhar revolta. E como um espaço anárquico não é o local mas as individualidades que fazem ele acontecer, cada umx dxs que agimos nesse espaço, assim como todxs xs que nos fortaleceram chegando até lá , propiciamos essa transformação. A expansão disso tudo seguirá como a expansão das gotas que caem no charco da água, insondável, imponderável.
Saímos provocando…
Quando apareceu o oficial de justiça para nos informar que tínhamos uma ordem de saída com intimação (o que quer dizer que ainda antes do processo de reintegração de posse nossa saída ia a ser forçadas pela brigada militar), o contexto estava dado e uma data marcada. Decidimos nos riscar alguns dias, ficando além da data, procurando sempre manter o mais valioso para nós. A informalidade.
Nos individualizar em sujeitxs diante do poder nunca foi nossa intenção e certamente também não foi nossa proposta entrar em processo jurídico nenhum. Não nos interessa a propriedade. Nesse contexto, decidimos dar um passo antes. Se não comunicamos nada sobre isto foi para manter o entusiasmo nos últimos encontros. Para ficar fortes e deixar acesa a brasa da vontade por ter um lugar de encontro. Para viver ao máximo o espaço.
Assim, fizemos de nossa saída uma festa. O último evento foi uma vivência convocada para a solidariedade que fez presentes compas de outras terras que foram despejadxs, compas que foram sequestradxs. Foi um encontro de diversidade de pessoas que vivem diferentes formas de insubmissão e conflito contra a dominação e que sentiram a raiva de dizer vamos fazer alguma coisa, vamos sair, vamos tomar as ruas. A “perda” do espaço, era algo iminente desde que descobrimos o histórico de poder dos donos mas, não queríam os que as forças e os ânimos declinassem. Aliás, não perdemos nada. Um espaço de anarquia é o encontro de afinidades. Nossas vontades estão intactas e nos acompanharão nas seguintes ousadias.
Saímos furtivamente nessa mesma noite, logo depois do evento, mas sobretudo, saímos provocando a insubmissão e o conflito em palavra e ação.
Então esta saída não é uma derrota: é a consequência lógica de ter atingido o poder, é a clara demonstração de que incomodamos tanto que várias influências foram movimentadas para conseguir essa ordem judicial contra nós em tão pouco tempo.
A força do efêmero nos posicionou numa conflitividade e confronto que se espalhou rapidamente para várias individualidades e espaços. Sentimos assim cada encontro que tivemos e cada ideia, vontade e grito de raiva que saíram da Biblioteca. O tempo da anarquia não pode ser medido por um relógio, a intensidade rebelde do que aconteceu nesta aparição da Biblioteca Kaos é inenarrável.
Nossa proposta de okupa em conflito foi uma determinação que culminou em provocações que sabemos tiveram ações como resposta.
Atiramos uma flecha no coração do sistema… e gritamos vitória na guerra!
Nosso salve para cada pessoa que participou e fez atividades, nos possibilitou acesso a elementos necessários para sobreviver e construir o espaço, que compartilhou com nós leituras e trocas de ideias incríveis, para aqueles que nos doaram livros e levaram outros em empréstimo, para aqueles que desde a distância nos mandaram material ou palavras de força (desde vários pontos do mundo e em vários idiomas): foram lenha forte que aqueceu o ambiente e que iluminou as noites. E nosso abraço cúmplice aos espaços okupados no mundo: são um ataque insubmisso ao sistema!!!
Biblioteca Anárquica Kaos
Segunda-feira, 15 de maio de 2017.
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