“Meu anarquismo” por Rafael Barrett

Me basta o sentido etimológico: “Ausência de governo”. Deve ser destruído o espirito de autoridade e o prestígio pelas leis. Isso é tudo
Será a obra da livre analise.

Os ignorantes referem-se a anarquia como desordem e que sem governo a sociedade se converterá no caos. Não concebem outra ordem que a ordem exteriormente imposta pelo terror das armas.
Mas se olharem para a evolução da ciência, por exemplo, verá como, a medida que o espírito de autoridade diminuí, nosso conhecimento se espalha e fortalece. Quando Galileu, deixando cair do alto de uma torre objetos de diferentes densidades, mostrou que a velocidade de queda não dependia de suas massas, posto que chegavam simultaneamente ao solo, os testemunhos de tão conclusiva experiência se negaram a aceita-la, porque não estavam de acordo com o que dizia Aristóteles. Aristóteles era o governo científico, seu livro era a lei. Havia outros legisladores: Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, São Anselmo. E o que resta de sua dominação? A memória de um impedimento. Sabemos muito bem que a verdade se funda apenas nos acontecimentos. Nenhum sábio, por mais ilustre que seja, apresentará hoje sua autoridade como um argumento; nenhum deles pretenderá impor suas ideias pelo terror. O que descobre se limita a descrever sua experiência, para que todos repitam e verifiquem o que realizou. E o que é isso? A livre análise, base de nossa prosperidade intelectual. A ciência moderna é grande por ser essencialmente anárquica. E quem será o louco que a acusará de desordenada e caótica?
A prosperidade social exige igualdade de condições.
O anarquismo, tal como o entendo, se reduz a livre análise política.
Precisamos nos curar do respeito à lei. A lei não é respeitável. É o obstáculo a todo progresso real. É uma noção que é preciso abolir.
As leis e as constituições que pela violência governam os povos são falsas. Não são filhas do estudo e da ascensão comum da humanidade. São filhas de uma minoria barbara, que se apoderou da força bruta para satisfazer sua cobiça e sua crueldade.
Talvez os fenômenos sociais obedeçam a leis profundas. Nossa sociologia está ainda na infância e não as conhece. É inegável que nos convém investiga-las, e que se alcançarmos um esclarecimento nos serão imensamente uteis. Mas, mesmo as possuindo, jamas ergueríamos como código nem um sistema governamental. Para que? Se forem de fato são leis naturais, serão cumpridas por si só, queiramos ou não. Os astrônomos não ordenam os astros. Nosso único papel será o de testemunhas.
É evidente que as leis escritas não se parecem, nem mesmo pelo forro[1], com as leis naturais. Valente majestade desses pergaminhos velhos que qualquer revolução queima em praça pública, transformando-os em cinzas para sempre! Uma lei que necessita do gendarme[2] usurpa o nome de lei. Não existe tal lei: é uma mentira odiosa.
E que gendarmes! Para compreender até que ponto nossas leis são contrárias a índole das coisas, ao gênio da humanidade, é suficiente observar os armamentos colossais, cada vez maiores, a massa de força bruta que os governos amontoam para poder existir, para poder aguentar a pulsão invisível das almas por mais alguns minutos.
Nove décimos da população terrestre, graças as leis escritas, estão degeneradas pela miséria. Não é preciso muita sociologia, quando pensamos nas maravilhosas capacidade assimiladoras e criadoras das crianças das raças “inferiores” para avaliar a monstruosa loucura desse desperdício de energia humana. A lei a barriga das mães!
Estamos dentro da lei como o pé chinês dentro de um brodequim[3], como o baobá dentro do vasa japonês. Somos anões voluntários!
E teme-se “o caos” se nos desembaraçarmos do brodequim, se quebramos o vaso e plantarmo-nos na terra, com a imensidade pela frente! O que importa as formas futuras? A realidade as revelará. Estejamos certos de que serão belas e nobres, como as da árvore livre.
Que nosso ideal seja o mais alto. Não sejamos “práticos”. Não tentemos “melhorar” a lei, substituir um brodequim por outro. Quanto mais inacessível pareça o ideal, melhor. As estrelas guiam os navegantes. Apontemos imediatamente para o fim distante. Assim, apontaremos o caminho mais curto. E venceremos primeiro.
O que fazer? Educarmo-nos e educar. Tudo se resume ao livre exame. Que nossas crianças examinem a lei e as desprezem!
Tradução: Rodolpho Jordano Netto
Fonte: https://es.theanarchistlibrary.org/
Notas
[1] Do original “ni por el forro” [Nota do tradutor]
[2] Militar de uma corporação especial responsável por assegurar a ordem pública e a segurança na França e em outros países. [Nota do tradutor]
[3] Instrumento de tortura aonde se amarra cada pé a um animal e os fazem andar para lados opostos [Nota do tradutor]