FITA ANTIGA – Inaê Diana Ashokasundari Shravya

FITA ANTIGA[1]
Inaê Diana Ashokasundari Shravya

Uma companheira, numa tentativa de justificar o motivo pelo qual votará este ano, disse: “O número de assassinatos da população trans aumentou este ano”. Sim, isto é verdade, dela não discordo. Contudo, tornar isto uma justificativa para o voto não faz sentido. É unicamente a luta social o que nos possibilitará mudar por completo esta situação. Com luta social, gostaria de deixar bem claro, não me refiro a recorrer ao educacionismo ou coisas semelhantes que são chamadas de “luta”, mas que no fim das contas não passam de uma atenção exacerbada ao predicado que se segue: a luta de classes, por exemplo, é convertida numa atenção desmedida à categoria classe enquanto se perde de vista a luta. É à luta que devemos dar atenção.

Isto me trouxe à mente uma coisa que há muito venho pensando: a falta de conflito nos movimentos sociais. Perceba, ao fazer tal afirmação, não me refiro a formas de luta que recorrem a medidas separatistas ou impossíveis de dialogar. Muito pelo contrário. É a afirmação do conflito o que torna dinâmica a luta social, isto é, devolve aos movimentos sociais aquilo que os torna movimentos. Um movimento social que não revê suas posições, que não se predispõe à tarefa árdua de compreender as suas condições sociais, é um movimento conciliado, ou, para fazermos uso duma expressão bem conhecida no Rio de Janeiro: pacificado.

Será que a dinâmica de violência direcionada aos corpos trans poderá ser combatida com a solenidade do voto? Será que atribuindo as nossas ações a um suposto representante nosso mudará a brutalidade da nossa realidade? De modo algum. É tão somente com a violência que se deve responder à violência. Temos de parar de temer o uso da violência. A violência, quando objetivada, pode ser utilizada como expressão de ira, não de ódio. Ódio é o que direcionam a nós, sem qualquer razão compreensível. Esta semana um homem cisgênero me enviou a seguinte mensagem no whatsapp às 9h38 da manhã: “Traveco do caralho. Filho da puta”. O que leva alguém a enviar mensagem deste tipo pruma pessoa às 9h38 da manhã? Que tipo de pessoa se predispõe a isso? A pessoa pegou o meu número num cartaz sobre leituras guiadas que faço para estudantes que vão realizar a prova da UERJ que circula nas redes sociais. Isto se chama ódio. O que eu sinto é ira. Não sou Jesus ou qualquer personalidade cristã pra tolerar intolerantes. Não dou a outra face a tapa, eu prefiro bloquear o golpe e revidar quando necessário. Percebam, eu não estou advogando ódio nem vingança. Eu não odeio os meus pais que me expulsaram de casa por eu ser trans. Eu os amo e muito. Eu não busco vingança pelas duas vezes em que fui estuprada na rua ou quando fui espancada. O que eu quero é direcionar a minha ira, fazer uso da violência pra mudar tudo isto, lutar pra garantir que mulheres cis e trans não tenham medo de andar nas ruas em determinados horários, pra garantir que o nosso sangue não será mais derramado. Eu tinha medo de morrer até um tempo atrás. Hoje em dia já não me permito este medo. O que eu tenho medo, é de viver sem ter lutado por uma vida verdadeiramente digna, pelos meus e pelas minhas. Este talvez seja o único medo que a democracia liberal não nos ensina. Talvez nem medo, mas vontade de viver.

Voltemos à afirmação do conflito. Em alguns movimentos sociais nos quais participei que tinham como um de seus princípios o apoio mútuo, eu notei que o conflito era sempre mal visto, interpretado como uma tentativa de implodir ou mesmo de acabar com a harmonia – ah, esse delírio romântico – do grupo. Daí acontecia, com certa frequência, que situações de racismo ou sexismo – ou ambos – eram pacificadas em prol da suposta harmonia do grupo, fosse pela alegação de que a pessoa que apontou o racismo ou sexismo não entendeu bem o que foi dito ou feito, fosse pela burocratização existente no grupo que permitia a dissolução do problema no labirinto fatídico da espera. Isso me soa absurdo, pois a mutualidade presume o conflito, o apoio mútuo se expressa, como gosto de chamar, numa mutualidade conflitante. Não é porque nos apoiamos que devemos evitar pontuar situações de opressão que ocorram, não importa se sejam corriqueiras ou não. O próprio educador precisa ser educado, disse Marx. É o conflito o que desestabiliza nossas conformidades, conciliações e pacificações que costumam ser realizadas sem que nos atentemos a elas. A mutualidade conflitante é o uso revolucionário do conflito, da violência, nos aspectos cotidianos, quando dizemos: “Isto que você acabou de fazer/dizer é inaceitável!”

É preciso não deixar barato as situações de violência com as quais nos deparamos diariamente. Se por um lado houve um aumento do número de assassinatos de pessoas trans (majoritariamente mulheres trans), por outro, não podemos esquecer que existe uma lei que criminaliza a transfobia. Ora, se tal lei existe, considerando que a sua criação foi no intuito de impedir que tais crimes ocorressem, como é que houve um aumento no número de casos de transfobia? A quem esta lei defende? Quem esta lei enviará pra cadeia? Em que medida ela não é utilizada como mecanismo de encarceramento em massa da população negra? A quem, aliás, a democracia liberal defende? No documento fornecido pelo IBGE sobre a expectativa de vida da população brasileira não consta nada sobre problemas relacionados à expectativa de vida curtíssima da população trans. Pra quem não faz ideia, a expectativa da população brasileira é acima de 70 anos, ao passo que a da população trans é de 35 anos, a mesma da população brasileira há um século atrás. Agonizamos sangrando em chão de hospital com enfermeiros nos chutando e médicos zombando das nossas caras; somos humilhadas sempre que possível nos espaços acadêmicos, com professoras que nos perguntam na frente da turma “o que você faz aqui?”; o nosso acesso aos direitos básicos são péssimos, precários. Não temos uma expectativa de vida de 35 por sermos porra loka. Temos essa expectativa de vida por sobrevivermos num país sistemicamente transfóbico. Portanto, não será pela integração sistêmica que combateremos a transfobia. É preciso virar a mesa, fazer escândalo, não nos contentarmos com o silêncio.

É preciso sermos mais assertivas, mais incisivas. Não será defendendo eleições e candidatas trans que conseguiremos algum tipo de mudança. Conseguiremos, sim, conformação: “é pouco mas é o que a gente pode fazer”. Que discurso mais derrotista! Parecem os cis de classe média lamentando enquanto abraçam as mazelas do neoliberalismo. Não conseguiremos nada apoiando candidata trans que está saindo pelo partido que perseguiu e criminalizou anarquistas e outros movimentos sociais, que possui aliança com o movimento neopentecostal desde o seu começo, que instaurou UPPs em favelas e periferias, que em 2007 realizou operações no Alemão, que investiu a maior parte do seu dinheiro em segurança em pública, que propôs a lei antiterrorismo, que deu apoio às universidades privadas com programas como o FIES (endividamento a longo prazo). Se hoje o Brasil é presidido pela pessoa estúpida que ocupa o cargo, é porque nos anos anteriores foram criadas condições de possibilidade para que ele se tornasse presidente. Antes de 2018 pessoas trans também eram assassinadas. Aliás, teve algum ano em que a população trans não tenha sido brutalmente assassinada? Deveríamos levar a sério o bordão da Inês Brasil: “se me atacá eu vou atacá” em vez de cairmos nas falácias da democracia liberal. Não é a nós que a polícia defende.

Nós temos que parar de reivindicar demandas e começar a reivindicar intransigentemente objetivos. Objetivos inegociáveis, objetivos que dizem respeito às nossas vidas. Somos nós quem tem que dizer o que é vida digna para nós. Ninguém mais tem esse direito. Temos que ser impertinentes, ousadas, manusear a violência em prol de nossas vidas pela imposição de limites àqueles que diariamente nos atacam.

Ou nos armamos e nos defendemos individual e coletivamente ou permaneceremos à mercê de migalhas que não nos alimentam nem um pouco. Temos que parar de fechar com simpatia. Nos acostumamos tanto com a precariedade que acreditamos no primeiro sorriso que nos é apresentado. A recreatividade do período de eleições uma hora acaba e quem tem que pagar o preço somos nós. É preciso dar um basta nisto. Os partidos que realizam disputas parlamentares são uma das formas mais eficazes de imobilizar lutas, de pacificá-las. Não importa se o partido diz – e com certeza diz – que não é preciso se filiar. O voto, essa expressão de mutismo seletivo e de choro engolido, realizará mudanças apenas nos salários de determinados candidatos. Não espere nada além disso. Enquanto os movimentos sociais permanecerem pacificados, novos candidatos estúpidos assumirão o cargo da presidência. Alguns até serão mais inteligentes e se esforçarão em demonstrar uma cara mais amistosa, mas tirada a máscara, o cenário pode até ser pior.

Contentar-se com o menos pior é o mesmo que estar morta em vida, aceitar a condição de moribunda.A inércia é uma farsa, o seu nome é conciliação. Conciliação é nada mais que ser conivente com o sistema atual e, portanto, com a própria transfobia que nos assassina com brutalidade cotidianamente.

Notas
[1] Referência a uma música homônima do rapper Flávio XL que eu admiro muito. O link pra escutá-la é o seguinte: <https://www.youtube.com/watch?v=UIJiqgrVmw8>