Uma visita com Mumia Abu-Jamal no corredor da morte: “É um lugar cruel, onde as coisas ruins acontecem”

[Em 29 de abril de 2010, dois ativistas alemães que apóiam o preso político Mumia Abu-Jamal, Anton Reiner (Berlim) e Michael Schiffmann (Heidelberg), tiveram a oportunidade de visitá-lo no corredor da morte do presídio SCI Greene em Waynesburg, na Pensilvânia, nos Estados Unidos. Eles foram acompanhados por Linn Washington, um jornalista e amigo de Mumia há muitos anos. Após uma longa e rigorosa preparação, os três conseguiram falar com Mumia por quase seis horas sobre a sua vida cotidiana, seu trabalho como jornalista, seus interesses políticos, a sua avaliação das futuras decisões judiciais e o movimento mundial pela Liberdade de Mumia.]
Entrando no SCI Greene
Um pouco antes das 9 horas da manhã, chegamos a um sinal de trânsito com um nome altamente irônico, State Correctional Institution Greene, Progress Drive 169-175 (Instituição Correcional Greene, Avenida Progresso 169-175).
Localizada em um vale, a prisão está espalhada por uma extensa área. Prédios baixos com teto de telhas coloridas sem janelas visíveis do exterior, duas cercas de arame farpado que brilham no sol, um estacionamento cercado de câmeras.
O lobby é bastante comum e nos faz lembrar um hospital, mas os procedimentos que seguem denotam a diferença. Na área de trabalho, entregamos nossos passaportes, assinamos a lista de visitas, esvaziamos nossos bolsos de objetos de metal. Um letreiro nos lembra que não é permitida a entrada de câmeras, gravadores, cadernos e canetas. Agora podemos ingressar nas entranhas do monstro: a primeira porta de radiografia, sensor de drogas, espera, radiografia mais ao lado. Uma porta de aço é aberta deslizando num volume quase inaudível e se fecha atrás de nós. Um longo corredor nos leva através de uma porta de ferro aonde três agentes por trás de um vidro à prova de balas checam os nossos passos. O ambiente não é mais relaxado, a atmosfera e o tom são significativamente mais tensos. Finalmente, nos permitem passar por outra porta de aço para percorrer um longo e sombrio corredor com paredes de vidro blindado, direto para o corredor da morte.
A próxima porta nos leva para a sala de visitas com cabines alinhadas em ambos os lados. De repente, estamos diante do homem que havíamos falado muitas vezes, de quem havíamos escrito tanto, para quem havíamos tentado construir apoio – o homem que nunca havíamos conhecido.
Mumia, o ser humano
Nossa ansiedade atingiu um bom nível quando recebemos Mumia. Vestido com um macacão laranja tipo de Guantánamo, ele bate forte no vidro à prova de balas que divide as pequenas celas em duas pequenas áreas de 1,5 metros quadrados cada uma. Sua alegre e ruidosa boas-vindas faz que o vidro se mexa e balance. É uma das poucas chances que um preso tem para iniciar contato com o mundo exterior.
Depois do choque inicial, o calor de Mumia nos faz sentir bem-vindos. Linn já esteve aqui antes, mas para nós é a primeira vez. Nos surpreende o aspecto de Mumia. As últimas fotos dele foram feitas há quase 15 anos, assim que esperávamos ver um homem que aparentasse seus 56 anos ou mais, um homem marcado por ter vivido metade da sua vida na prisão. Mas não, conhecemos um homem vibrante, intenso e versátil, que aparenta ter apenas cerca de 45 anos. Sua pele é fresca e relaxada, sua expressão facial viva e alegre e postura saudável. Se movimenta com muita energia para cima e para baixo em seu pequeno espaço e podemos ver seus dredlocs ligeiramente grisalhos que chegam a bater no chão.
Muitas pessoas têm ouvido a voz séria de Mumia quando ele lê seus próprios ensaios gravados pela Prison Radio. Mas Mumia também tem um bom senso de humor, ri muito e muito forte, é bastante sorridente. Apesar de nossas conversas sobre a vida na prisão e o sistema judicial com coisas bastante desagradáveis, parece que Mumia sente uma alegria interior que não tem nada de cinismo ou macabro.
Igualmente impressionante é a sua percepção muito aguda. Ele nos faz um monte de perguntas e regressa a elas várias horas depois, quase sempre mencionando os detalhes muito precisos. Em sua conversa com seu amigo Linn Washington sobre os detalhes legais e as referências aos arquivos, você percebe que sua memória é muito precisa e bem treinada. Sua postura reflete uma confiança em si mesmo, é expressa de forma clara e ao ponto de um problema. Nos fala em linguagem acadêmica como na linguagem das ruas.
As condições carcerárias
A cela de Mumia é fechada com uma porta de aço que tem uma ranhura onde se passa a sua refeição. Tem duas janelas estreitas, de vidro à prova de balas para o corredor, mas nenhuma manivela. A cela mede 1,8 x 3 metros. Na parede oposta à porta há uma pequena janela que mede 60 x 80 cm. As paredes e o teto são pintados de branco. Não há cor. É proibido fazer pinturas ou ter fotos nas paredes. Sua cama começa a um metro da porta e se estende até a parede exterior. À esquerda há uma unidade de aço inoxidável com pia, vaso sanitário e um espelho turvo, este também de aço, no qual quase nada é visível. Do mesmo lado há um armário de metal para colocar todos os seus pertences pessoais. O único mobiliário é uma cadeira. Nenhuma mesa. Mumia senta na cama para comer e escrever. A lâmpada do teto está acesa 24 horas por dia e é totalmente controlada do exterior. À noite, a luz diminui um pouco.
Mumia tem uma televisão e um rádio em sua cela que lhe permitem receber dois canais da administração penitenciária, estes transmitem anúncios oficiais e filmes ruins. Com a recepção por cabo, a televisão tornou-se uma importante fonte de informação para Mumia. No entanto, custa 16 dólares por mês, e o apoio institucional para os presos sem fundos é de 17 dólares. Sobre esta situação Mumia bromeia que duas vezes por mês, o preso comum tem o privilégio de sentar diante da TV com um doce que custa 0,50 na loja da prisão.
Após dez anos tentando obter uma máquina de escrever elétrica, Mumia, finalmente, conseguiu uma em 2005. Infelizmente, ela quebrou no começo deste ano e ainda está na oficina. Mais uma vez, escrever tudo à mão com uma caneta tinteiro.
Não ter cor em sua cela é um grande problema para Mumia. Conta que durante os primeiros dias de abril, perdeu horas intermináveis olhando a grama alguns metros abaixo da janela de sua cela por estar tão satisfeito com o verde e o amarelo dos narcisos.
Os presos tampouco têm variedade na cor de sua roupa. Além do macacão laranja só tem a opção de calças e blusas na cor marrom, muito feio para que Mumia ponha com uma roupa interior térmica branca.
Mumia menciona que ele ficou muito contente de receber todos os cartões postais coloridos da Alemanha durante os últimos dois anos. No seu aniversário recebeu mais de cem cartas, cerca de 50 da Alemanha. Nós perguntamos se as pilhas de cartas que recebe e sua fama mundial provocam inveja ou causam problemas com outros presos. Diz que “às vezes, sim”, mas ele tenta tratar todos os presos com respeito e sente que todos reconhecem isto, embora algumas pessoas não gostem. Por outro lado, sente que tem muitos amigos, em parte devido à sua capacidade para inspirar as pessoas. Ele diz: “Suspeito que eu tenha a imagem de um tipo animado e divertido”. Parece que ele está certo porque vemos que outros presos gritam alto e batem na sua porta quando passam pelo corredor, e ele responde da mesma maneira.
A vida cotidiana no corredor da morte
O dia começa às 6 da manhã com café ou chá e um biscoito. Das 7 às 9, Mumia vai ao pátio para fazer exercício. Dois guardas acorrentam as suas mãos e os pés para levá-lo. As celas dos outros prisioneiros estão bloqueadas com chave quando ele passa, nunca viu o interior delas. O pátio é dividido em pequenas gaiolas de 3 x 4 metros, com um máximo de dois prisioneiros trancados em cada uma. Antes, o pátio estava aberto a todos os detidos, mas depois de um dia quando vários presos se recusaram a retornar às suas celas para protestar contra uma decisão oficial, o pátio foi dividido de modo que os guardas possam lidar com os prisioneiros individualmente e evitar que os presos atuem coletivamente.
Quase sempre faz frio pela manhã, por isso Mumia faz muito exercício. Ele gosta de jogar rebote. “O quê? Neste pequeno espaço?”, perguntamos. Dá um sorriso seco. “Pois, sim”. O tempo no pátio também é o único momento de realizar conversas sérias com os outros presos e serve como um momento para troca de informações jurídicas e vida pessoal. Mumia aproveita deste período para isto.
Às 10 da manhã o almoço é servido através da ranhura na porta da cela. Uma das brincadeiras favoritas dos guardas é retirar a comida imediatamente se o preso não está junto da porta a “tempo” e, em seguida, ridicularizá-lo, dizendo: “Eu vejo que você não está com fome hoje”. Isso geralmente acontece quando um preso está demasiado doente para se mover rapidamente, ou quando um deles foi espancado pelos guardas.
A comida servida em bandejas de plástico raramente tem algo fresco. Normalmente, há arroz ou batatas, legumes picados e um pouco de carne cozida, todos aquecidos no microondas. Durante anos, Mumia e outros prisioneiros tentaram conseguir pelo menos um pouco de frutas frescas de vez em quando. A comunidade Bruderhof perto da prisão já se ofereceu para levar frutas e legumes frescos de sua fazenda orgânica para todos os presos, mas SCI Greene rejeitou a oferta várias vezes.
O jantar é servido em torno das quatro horas da tarde, mas Mumia nem sequer se preocupa em descrevê-la. Este é o fim de um dia no corredor da morte, algumas horas mais tarde, a luz é reduzida.
O corredor da morte e os custodiados
Com muita paciência, Mumia responde às nossas perguntas sobre o desenho do lugar onde ele está forçado a viver. O corredor da morte de Greene é composto por quatro unidades com um terminal de monitoramento no centro, a partir dos quais quatro corredores levam para as unidades. Portas de aço, portas de aço e portas de aço.
Cada unidade tem dois andares com quatro celas de isolamento de cada lado. Lá também está o “buraco” onde os prisioneiros são mantidos 24 horas por dia sem luz natural. Mumia esteve ali várias vezes, mas não falou nada durante a nossa visita.
Quando mencionamos que a limpeza da prisão parece tão demente como a de um hospital, Mumia diz que sim, que é possível comer no chão, mas não conseguiria ver quem está atrás de você. “É um lugar cruel, onde as coisas ruins acontecem”. Nós temos uma melhor idéia do “inferno brilhante” que Mumia menciona com freqüência.
Ele acha que o trabalho no corredor da morte tem de ser atraente para os guardas. Eles não têm quase nada para fazer e não tem relações com mais de duas pessoas ao mesmo tempo. Mas isso não significa que eles tratem os detentos bem. Mumia acredita que cerca de dois terços dos guardas no corredor da morte sejam racistas e brutais, mas eles sabem como trabalhar de maneira formalmente “correta”, porque sabem que os presos vão ficar aqui por muito tempo e são capazes de elaborar um relatório e acompanhar tudo o que acontece.
Ainda assim, os guardas usam da violência contra os presos com freqüência. Tentam cometer seus abusos fora da presença de testemunhas para evitar acusações. Charles Graner, um dos torturadores envolvidos no escândalo de Abu Ghraib, foi um guarda no SCI Greene antes de ir para o Iraque. Mumia não o conhece pessoalmente, mas sabe que Graner foi condenado em 2005, e que a administração da prisão afirmou que ele poderia voltar a trabalhar em Greene, no caso de que ele perdesse o seu emprego no Exército.
Falando da política mundial
Mumia está sempre informado sobre os acontecimentos políticos no mundo, mas agora tem muitas perguntas sobre a Alemanha. Está interessado em aprender mais sobre a guerra contra a ex-Jugoslávia, em 1999, a participação atual da Alemanha no Afeganistão e as reações da população alemã. Ele também pergunta sobre a transição da antiga República Democrática Alemã de um estado socialista para uma sociedade capitalista.
Durante a nossa conversa, Mumia insiste novamente, independentemente de qualquer teoria política, a coisa mais importante é se organizar. “Ninguém deve subestimar o que um grupo de pessoas organizada pode conseguir, mesmo um pequeno grupo. Minha própria sobrevivência é a prova da capacidade da ação organizada”.
E, claro, falamos muito do presidente Obama. Mumia assume que Obama está bem informado sobre a contínua discriminação contra africano-americanos e os seus graves problemas. O único erro, diz Mumia, é supor que Obama realmente quer alcançar uma mudança social fundamental. Na verdade, ele simplesmente era a pessoa mais capaz de aproveitar o descontentamento generalizado com Bush e sua camarilha. Mumia o descreve como “o belo rosto negro do imperialismo” e “um homem negro com a mentalidade branca”.
O caso de Mumia
Ao falar do sistema de justiça, Mumia observa que, aparentemente, promotores e juízes têm mais problemas em encontrar jurados dispostos a impor a pena de morte, mas lembra que ainda há o desejo de impor sentenças especialmente longas e cruéis.
Nossas últimas horas na prisão são dedicadas ao caso de Mumia e suas expectativas. Ele concordou conosco que o advogado da Filadélfia não está interessado em dar-lhe a oportunidade de apresentar seu caso perante um júri. O Terceiro Tribunal de Apelações tampouco. Mas esta continua a ser a meta de Mumia. Apesar de, legalmente falando, uma audiência sobre a sentença só pode resultar em prisão perpétua ou a pena de morte. Mumia continua a envidar todos os esforços para apresentar a sua história no tribunal. Acha que o Terceiro Tribunal de Apelações tem pelo menos duas opções. Ou pode decidir se o juiz William Yohn estava certo para desfazer a pena de morte em 2001, ou enviar o caso para o Tribunal Distrital de novo. Antes de tomar esta decisão, o Terceiro Tribunal de Apelações pode realizar uma audiência estritamente sobre a prova, mas Mumia pensa que isso depende inteiramente do critério dos juízes, e não das verdadeiras questões legais. Ele acrescenta que os precedentes jurídicos ajudaram seu caso, mas que os seus direitos não foram respeitados pelos tribunais.
No final, Mumia enfatiza a importância de (1) a luta contra a pena de morte, (2) o caráter injusto de seu julgamento em 1982, e (3) o fato de que ele é inocente e que a Promotoria nunca teve provas válidas contra ele. Mumia sabe que os seus apoiantes têm enfatizado estes pontos durante anos e espera continuar a fazê-lo. Ele nunca deixa de destacar que o trabalho de solidariedade é fundamental na produção de uma decisão favorável nos tribunais.
Mumia enfatiza que o movimento pela sua liberdade e os movimentos em geral, devem encontrar seu próprio caminho e formar suas próprias opiniões.
A luta jurídica e a luta política pela sua vida são realizadas em dois níveis diferentes. Os advogados, por mais importantes que sejam, nunca podem guiar os movimentos, isto não é o trabalho deles. Que Mumia saiba, isso nunca levou ninguém para o sucesso. Seu conselho para o movimento é fazer sua própria análise e agir em conformidade com ela.
Nos despedindo
Depois de conversar durante seis horas, temos que ir. Isto dói bastante. Juntamos as palmas das mãos através do vidro que nos separa. Mumia se despede dizendo: “mover” com o punho levantado. Temos de nos esforçar para sair, e quando nos afastamos vemos que Mumia deixa de lado seu punho sobre seu coração. Nós fazemos o mesmo. Achamos inconcebível que este homem tão cheio de energia agora seja levado de volta para o “inferno brilhante”, enquanto nós, depois de passar pelos vários cadeados e trancas, desfrutamos de uma bela tarde ensolarada de primavera.
Texto originalmente publicado em Abu-Jamal News, # 4:
http://abu-jamal-news.com/docs/proof.pdf
• Envie uma carta ou cartão (com muita cor!) para Mumia:
Mumia Abu-Jamal
AM 8335
SCI Greene
175 Progress Drive
Waynesburg, PA 15370
EUA
agência de notícias anarquistas-ana
Águas refletindo,
Num dia de piquenique,
O brilho do sol.
Vinicius de Oliveira Baptista – 8 anos