Ações coletivas de apoio a sobreviventes e responsabilização de agressores por abusos e agressões machistas – relato #2

Em 2004 ocorreu um estupro em uma comunidade ativista de Sidney/Austrália. Em busca de uma forma coletiva de responder a isso, um grupo de apoio à sobrevivente se formou, e com a participação direta dela foi criado um processo de justiça restaurativa que levasse a uma responsabilização do perpetrador e o empoderamento da sobrevivente. O texto que segue é um relato de Jen, que foi convidada para ser facilitadora do processo todo, e fala um pouco sobre tudo o que aconteceu e as reflexões que isso gerou, identificando algumas problemáticas, erros e acertos nessa experiência. Este é mais um dos relatos que publicaremos de ações coletivas criadas em outras partes do mundo como forma de resposta à agressões e abusos, não com o intuito de que sejam copiadas, mas de que reflitamos sobre nossas próprias realidades buscando seguir adiante em nossos debates e ações concretas tendo como apoio outras experiências que já existiram.

* Tradução feita a partir do zine What Do We Do When #2. 

 

* * *

Facilitando a Justiça Restaurativa Autônoma 

INTRODUÇÃO           

 O que fazemos quando acontece violência sexual em comunidades ativistas? Em 2004, em Sidney/Austrália, fui chamada para facilitar um processo de “justiça restaurativa” com uma mulher que havia sido estuprada, o homem que a estuprou e a comunidade em seu entorno. Este é um relato pessoal de minhas experiências.

Pessoal porque não existe uma forma de ser definitiva ou objetiva sobre o processo que foi levado adiante nas condições específicas de nossa comunidade e desenvolvida por indivíduos com necessidades particulares. Eu também poderia apontar que devido à natureza emocional do processo não posso me separar o suficiente da experiência para escrever um relato objetivo. Também sou um produto, embora consciente, de minha cultura e das pessoas ao meu redor.

Eu uso Justiça Restaurativa (JR) como um termo útil, embora não ache que o que fizemos se encaixe perfeitamente na definição estabelecida de JR como é usada pelo Estado. Existem outros nomes como resolução de conflitos e justiça transformativa, nenhuma das quais realmente se encaixa. Também existem muitas teorias sobre o que é ou não é, mas ao invés de tentar destrinchar estas coisas aqui, tentarei simplesmente registrar o processo que usamos em detalhes na esperança de que seja um recurso útil para outras pessoas trabalhando contra a violência sexual. Deixemos a teoria seguir a prática.

PREPARAÇÃO

A primeira vez que ouvi sobre o estupro foi quando o perpetrador (Marty*) me contou o que tinha feito. O processo de JR já estava sendo organizado e ele pediu minha opinião sobre buscar um facilitador. Minha primeira resposta foi, em ordem, que estava feliz por ele buscar fazer alguma coisa quanto a isso e que duvidava que alguém quisesse facilitar este processo. Qualquer pessoa próxima às envolvidas seria inapropriada, e um facilitador profissional ou terapeuta evitaria lidar com a situação a todo custo, eu disse. A raiva veio depois. Foi quando veio o sentimento de confiança quebrada, e todos os “e se…” e questões que surgem ao longo disso. Eu lutei contra as negações comuns: Foi realmente um estupro? Como defino isso? Quanto ao próprio processo em si, estava intrigada e profundamente hesitante.

Algumas semanas depois outra participante (do grupo que estava trabalhando com Zoe no desenvolvimento do processo) me perguntou se poderia facilitar. Eu concordei a princípio. E tenho que admitir que foi parte porque estava em um ponto de minha vida em que dizia sim para tudo. Mais importante, entretanto, eu tinha lido a proposta e após algumas semanas de discussão com algumas das pessoas participantes eu sabia que o projeto era possível e vital. Eu trabalhei no setor de assistência social por muitos anos, e os últimos dois no sistema de justiça criminal. Eu vi o que acontece com pessoas que vão para este sistema, tanto vítimas quanto transgressores. Não funciona. Eu também fui facilitadora na comunidade anarquista/ativista por oito anos, e escrevi uma tese honrosa sobre tomadas de decisão em pequenos grupos. Para aceitar o desafio de facilitar o projeto não foi preciso uma decisão difícil, mas a tarefa em si foi assustadora. Por onde começar?

Depois que aceitei participar, tive de encontrar Zoe e conversar com ela sobre o que ela queria do processo. Conhecia Zoe socialmente, mas não muito bem. Nos encontramos no parque e conversamos sobre ideias gerais, problemas práticos, e seus sentimentos sobre o estupro e suas consequências. Minhas impressões imediatas foram de força e uma necessidade de encerramento; ela estava muito consciente de seu próprio processo. Seria difícil aceitar o papel de facilitadora sem compreender suas motivações. Tendo trabalhado com a ideia por um ano, ela estava bem preparada para seguir adiante com isso. Nos meses que gastamos trabalhando neste encontro, aprendi muito. E muito disso com Zoe.

O próximo passo foi a pesquisa. Li tudo que consegui ter acesso, de manuais do sistema de justiça criminal a livros de filosofia do perdão. Resumidamente, justiça restaurativa é a ideia de que a vítima e o perpetrador se encontrem com um grupo de seus pares e discutam os efeitos do crime, permitindo que a vítima processe sua dor e que o perpetrador mude. É baseada nos processos Maori e de nativxs americanxs. Foi implementado na Nova Zelandia e Austrália no início dos anos 90 e então nos Estados Unidos. Dentro do sistema de justiça criminal, é ordenado pela corte que o perpetrador vá para este processo a invés de ir para a cadeia, tornando-se uma espécie de punicão. RJ é usada para criminosos juvenis, e não para crimes sérios. Em New South Wales a seção de RJ do Departamento de Serviços Corretivos é bem pequeno e as cortes parecem relutantes em prescreve-la para coisas além de crimes menores. Este é o primeiro processo autônomo de JR que qualquer pessoa entre nós teve conhecimento.

Estupro não é uma bola de tênis que quebrou uma janela. Tivemos que formular um processo que se encaixasse em nossa situação específica. Felizmente o grosso do trabalho foi feito por Zoe e o grupo com o qual ela trabalhou, que escreveu uma proposta e plano básico para o dia. Eu revi isto em mais detalhes com ela e o grupo em uma série de encontros. Também encontrei com Marty e tentei entender seus sentimentos e expectativas para o encontro. Ele admitiu o abuso e parecia querer genuinamente fazer algo quanto a isso. Sem este processo não seria possível.

De toda a preparação, para mim a parte mais importante foi encontrar Zoe. Na literatura, as pessoas facilitadoras precisam informar as participantes, mas em meus encontros com o grupo senti que elas que estavam me informando, para meu alívio. Ler e discutir isto com pessoas de fora do processo foi algo vital. Tive sorte em ter um mentor e alguns amigos com os quais pude trocar ideias.

Enquanto planejávamos o processo com mais detalhes, o grupo conseguiu um espaço, cadeiras, comida e organizou os ritmos. Tivemos a sorte de ter um squat com vista para as árvores para usar no dia, e me senti abençoada por estar trabalhando com um grupo ativista muito hábil e organizado. Tinha muitas expectativas para o dia, algumas ideias sobre o que seria possível e quais perigos enfrentaríamos como grupo. Eu falarei sobre isso em mais detalhes a seguir, mas primeiro quero explicar o processo.

O PROCESSO

Abaixo está o plano para o dia. Como antecipado, o dia em si foi diferente do plano, mas acho importante ter um registro do processo que tentamos usar antes de explicar como foi adaptado.

I

Facilitadora: Antes de tudo gostaria de relembrar que estamos em território Eora e expressar minha solidariedade com a luta dos povos indígenas por autodeterminação. Agradeço por virem. Meu nome é Jen e hoje serei a facilitadora. Primeiro gostaria que todas as pessoas se apresentassem em circulo e dizendo seus nomes, e então explicarei o processo de hoje.

Grupo: diz seus nomes.

Facilitadora: algumas questões básicas: onde estão os banheiros, cozinha, desligar os celulares, primeiros socorros (medicamentos, lenços)

O dia de hoje pode trazer a tona muitas questões para as pessoas, então se você precisar de alguém de fora deste encontro para conversar, aqui está uma lista de organizações que podem ajudar. [eu levei uma lista preparada de contatos – rape crisis centre, telefones de apoio, etc.]

Todo mundo está confortável?

Agora vou explicar o processo de hoje e qual meu papel dentro dele. Primeiro gostaria de falar algumas palavras sobre porque estamos aqui. Estamos todxs aqui porque fomos afetadxs por um estupro em nossa comunidade. Estamos aqui para expressar nossas respostas a este estupro. Estamos aqui porque somos ativistas autônomxs que acreditam em nos responsabilizar por nossas ações, ao invés de usar o sistema de justiça criminal. Também estamos aqui para buscar formas de seguir adiante como comunidade e prevenir que isto aconteça de novo.

Meu papel é explicar o processo para este dia; tornar o encontro seguro para todas as pessoas (isto significa que irei te interromper se achar que seu comportamento é inapropriado); para fazer pausas regulares; e para assegurar que mantenhamos o foco no processo acordado. Sou nova nisto também, então por favor me chame atenção se achar que não estou fazendo um bom trabalho.

Agora vou explicar o processo (como definido a seguir)

Todo mundo entendeu e concorda?

Nós também idealizamos algumas regras base para hoje:

– que este processo é confidencial;

– que nos focaremos no mal que foi feito – o ato e não o ator – e o máximo possível usando declarações “eu” como “eu sinto”;

– que este é um espaço de não-julgamento e reconhecemos que todas as pessoas tem formas diferentes de lidar e se comunicar e que vamos ouvi-las;

– que não vai existir interrupções enquanto alguém está falando (exceto por mim); e

– que qualquer pessoa em qualquer momento pode pedir uma pausa indicando para mim. Estamos aqui porque escolhemos estar aqui, e ninguém pode sair em nenhum momento. Entretanto por favor peça uma pausa se você ou outra pessoa estiver se sentindo fatigada.

Todo mundo entendeu e concorda?

Tem alguma pergunta sobre o processo?

Agora gostaria de convidar Zoe a começar este processo contando sua história.

  1. Zoe: conta sua história, ela decide ler uma detalhada carta escrita previamente sobre suas experiências.
  2. Um minuto de silêncio.
  3. Facilitadora: Agora vamos nos juntar em circulo e falar sobre nossas respostas ao estupro. Você pode falar o quanto quiser, então tem seu tempo.

Como um guia, eu sugiro que as pessoas falem sobre as seguintes questões:

  1. Como você se sentiu quando ouviu pela primeira vez sobre o estupro;
  2. Como se sente agora;
  3. De que forma acha que isto te afetou;
  4. De que forma acha que isto afetou nossa comunidade.

Eu trouxe uma pedra que peço que você segure enquanto estiver falando, e passe para a próxima pessoa quando tiver terminado. Isto por um lado é para tornar meu trabalho mais fácil, mas também para nos ajudar a ter nosso tempo de fala. Primeiro, vou ler os e-mails de pessoas que não puderam estar no encontro. [Leio os e-mails]

O grupo fala.

  1. Facilitadora: Agora gostaria de chamar Martin para que fale sobre como ele está se responsabilizando pelo estupro e os passos que está tomando para mudar.

Marty fala.

  1. Facilitadora: Agora eu gostaria de convidar todas as pessoas para que se juntem em circulo de novo, para que respondam ao que Marty disse e sugerir outras ações que ele possa fazer, você talvez também queira falar sobre como podemos seguir adiante enquanto comunidade.

O grupo fala.

  1. Todas as pessoas: discussão sobre as questões que vieram a tona
  2. Facilitadora: agradecimentos e fechamento do encontro.

Entre cada passo eu explico novamente qual a intenção do próximo passo. Pode soar como um monte de explicações, um monte de regras. Mas precisamos criar um espaço seguro onde cada pessoa possa expressar suas emoções mais fortes sem perder o senso de direção. Sem uma proposta coesa, pra não mencionar a possibilidade de conflito, é necessário manter os limites da confiança de uma forma explícita. Por esta razão o processo parece um tanto formal.

Eu também tinha algumas notas para que ficasse ligada quanto a algumas coisas. Eu havia considerado que poderia existir pessoas presentes que tivessem problemas em expressar seus sentimentos, ou que não conseguissem ser construtivas com sua raiva. Algumas destas notas eram úteis, outras não. A lista compreendia:

Linguagem: usar nós/nossos nas afirmações

Verificar a necessidade de pausas

Participação

Concordância/transferência/projeção/arquétipos

Martírio/culpa/fixação/ligação

Se emperrarmos: identificar, perguntar

Mover, checar o ambiente

Cinético, oral, imaginativo, visual

Como Jen está indo?

Era importante pra mim usar declarações “nós” para criar um senso de coesão. Eu não precisava realmente verificar a necessidade de pausas se as participantes podiam pedi-las, mas era bom me lembrar de ficar atenta a isso. Participação não era realmente um problema – todas as pessoas tinham sua vez de falar e embora poderia ser diferente em um outro grupo, fico feliz em dizer que todas falaram fluentemente e bem. Os dois pontos seguintes vem de minha experiência como assistente social/terapeuta. Eu não sabia o quanto eu precisaria guiar as pessoas em suas respostas. Eu estava preocupada com o potencial de transferência de dinâmicas de experiências passadas de abuso. Estava preocupada que as pessoas pudessem se identificar e defender o agressor – incluindo eu mesma, já que naquele momento estava trabalhando com prisioneiros e muito ciente das forças sociais que contribuem para um crime violento.

O penúltimo ponto tem a ver com processos de tomada de decisão. Foi projetado para a discussão das questões no passo 7, mas no momento em que chegamos a ele estávamos todxs exaustxs. Ao invés de tentar pressionar as pessoas adiante com jogos ou movimentos, sugeri que cancelássemos essa discussão planejada e o grupo consentiu.

O último ponto da minha lista foi muito útil assim como difícil de lembrar que embora eu tivesse um grau de controle sobre a estrutura do encontro, eu também passaria por meu próprio processo emocional. Eu sofri violência sexual e doméstica em minha vida e embora eu soubesse que seria afetada pelo encontro, não tinha como prever de que forma isso seria. Eu sabia que deveria lembrar a mim mesma de que tudo bem ser “egoísta” se eu precisasse de uma pausa. Fui cuidadosa em observar meu próprio estado mental, para ouvir ativamente sem me tornar tão envolvida.

NO DIA

O encontro começou um pouco atrasado com pessoas perdidas pelo squat em vários estados de apreensão. Nas cadeiras emprestadas organizadas em circulo, me sentei de frente para a saída, com Zoe a duas cadeiras à minha esquerda e Marty três cadeiras à minha direita – então eles não estavam exatamente de frente. A organização dos lugares foi dividido em “times”, com pessoas dos “lados”, o que me assustou a princípio, mas acho que seria inevitável. Eu fiz a introdução como planejado e passei a pedra para Zoe contar sua história.

Não consigo articular meus sentimentos sobre esta parte do encontro. Posso apenas dizer o quão poderoso foi Zoe começar lendo nervosamente e terminar falando alto, carregada de emoção e força.   A energia foi incrível e esmagadora. Nós tínhamos planejado um momento de silêncio, mas precisamos de uma pausa de 10 minutos, que foi pedida por Zoe.

Paramos por 10 minutos e então retornamos ao estágio 4, o primeiro circulo. A pedra da fala ajudou bem para entender quando a pessoa havia terminado ou tinha feito apenas uma pausa. Depois do primeiro circulo tivemos uma longa pausa, cujos primeiros 10 minutos gastei chorando descontroladamente numa sala dos fundos. Eu esperava me sentir forte, mas naquele momento desejei ter alguém que cuidasse de mim! Felizmente pude caminhar pelas árvores, onde fiz alguns alongamentos ao lado de alguns corredores e me senti melhor para a segunda metade.

Nos reunimos para ouvir a resposta de Marty com uma mescla de apreensão e alegria. A primeira parte do processo foi dolorosa, mas o ato de falar era ao mesmo tempo libertador e condutor para a coesão do grupo.

A resposta de Marty me abalou, e acho que a muitxs de nós. Ele disse não ser capaz de compartilhar seu processo de mudança já que as coisas que estava mudando estão todas em sua mente. Ele falou sobre o dia como se fosse algo que estivéssemos fazendo com ele, ao invés de algo do qual ele fosse um participante ativo. Eu esperava um pedido de desculpas, ou ao menos um exemplo concreto do que ele estava fazendo: vendo um conselheiro, ou oferecendo algum tipo de apoio aos projetos do grupo em andamento. Eu estava desapontada.

Em parte este desapontamento foi por minha própria culpa. Eu estava otimista quanto ao processo e em minhas preparações pensei sobre o potencial de bons porvires, particularmente quando falava com o grupo. Fiquei determinada a me manter positiva. Eu desejei que pelo menos nos aproximássemos do perdão. A lacuna entre teoria e prática é sempre grande quando você começa com uma teoria e tenta aplica-la com as pessoas.

Começamos o passo 7 em um estado de quase exaustão. Participantes levantaram muitas questões. As sugestões incluíam: um pedido de desculpas; que Marty se mantivesse em contato; que ele revelasse o estupro a qualquer pessoa com quem se aproximasse, politicamente ou pessoalmente; e que distribuísse as publicações que o grupo fizesse; todos bons, e concretos pontos. Acho que ele ouviu, mas quando teve a oportunidade de falar novamente, ele pareceu se perder em uma série de auto-justificativas.

Ele não estava certo se era parte desta comunidade, dizia, o que veio como um choque para nós que havíamos trabalhado durante anos com ele e nos considerávamos amigxs. Eu não quero que este artigo seja sobre o processo de terapia dele, mas a resposta era uma clara indicação de onde ele estava. Existe um ponto importante a ser colocado aqui, que foi algo que uma das pessoas participantes respondeu a Marty. Comunidade é algo que você faz parte, quer queira, quer não. Nós não escolhemos ser interdependentes, simplesmente somos, e até que reconheçamos isso nunca seremos capazes de organizar nossas próprias vidas. E isto não está em conflito com a ideia de responsabilidade individual. A comunidade se encontra no coração da autonomia.

Um momento em particular do segundo circulo realmente afetou Zoe, e foi quando uma das pessoas apoiadoras de Marty começou a argumentar que sua falta de resposta era justificável porque não estava integrado ao processo de JR. Ela argumentou que a resposta dele não era a parte mais importante do dia, mas sua forma de se comunicar pareceu defender Marty e ir contra o processo que havíamos desenvolvido. Zoe pediu uma pausa e ficou bastante angustiada. Alguns minutos depois ela veio até mim e me disse que queria ir embora. Eu a encorajei a ver além. Mais tarde me senti culpada por isso, eu não queria força-la a participar, e senti que estava impondo minha própria agenda, como havia vislumbrado que ela deveria ter a última palavra. Ela me disse que sentiu certa pressão para continuar, mas ficou feliz por ter ficado até o final.

Apesar do cansaço do grupo, houve muitos pontos positivos nesta parte do processo. Eu pude sentir a raiva pela resposta de Marty, mas houve um esforço genuíno para comunicar a ele de onde vinha a raiva e desafiar sua forma de pensar. A resposta ao processo em si foi positiva, e muitas participantes expressaram o desejo de continuar se encontrando para desenvolver processos semelhantes para lidar com futuros conflitos.

Nós arrumamos as coisas e fomos a um bar. No caminho Marty me ligou para agradecer por ter moderado. Parecia uma reflexão tardia. Fiquei brava com ele por muito tempo pela forma que se comunicou no encontro, mas fui percebendo que por fim não importava se ele pediu desculpas ou não. Importava que Zoe e as outras participantes pudessem contar suas histórias. Importava que o fizemos, que mostramos a ele – e mais importante, a nós mesmas – o quão fortes realmente somos.

ALGUMAS REFLEXÔES

A segunda parte do encontro foi útil? Acho que sim. Sem a participação de Marty a primeira parte teria sido punitiva ou sem sentido. Sem as respostas para Marty não teríamos sentido o senso de interação e participação necessário para tornar isso real para ele. Embora o processo dependa da participação de Marty nesse sentido, não se tratava dele. Se tratava de Zoe e das pessoas que se importavam com ela. Neste sentido eu poderia dizer que foi um sucesso. Entretanto, acho que levantamos mais questões do que respondemos. Nós ainda não sabemos realmente como a responsabilização funciona, o que significa se responsabilizar.

Isto afetou todas as pessoas de diferentes formas, mas eu pessoalmente fiquei um tanto perturbada após a experiência de Justiça Restaurativa. Passei por uma doença física e emergiu uma grande e silenciosa fúria contra o mundo em geral, mas especialmente por Marty. Eu estava e ainda estou brava com ele pelo estupro. Também estou brava com ele pela forma com que participou do processo. Não tenho mais contato com ele. É triste perder um amigo, mas foi o estupro, e não o processo de JR que rompeu nossa confiança. Cabe a ele se responsabilizar por isso.

Pouco depois do encontro, Marty deixou nossa comunidade por sua própria escolha. Para o resto de nós, foi difícil ver que ele não estava fazendo nada quanto ao estupro, mas pelo menos oferecemos a ele a oportunidade. Frequentemente pessoas são simplesmente expulsas de uma comunidade sem considerar as pessoas como seres humanos capazes de mudanças. Isto também pode cortar a oportunidade de encerramento para a vítima. A justiça “tradicional” congela as pessoas nestes papéis. Acho que a JR tem o potencial de nos libertar da vergonha e vitimização e ultrapassar nossos erros. Ver que a voz de Zoe mudou conforme ela contava sua história, da leitura nervosa para a fala empoderada, foi toda a evidência que eu precisava para acreditar que podemos transcender os papéis que um ato de violência pode lançar sobre nós.

O que fizemos com certeza não foi uma forma perfeita de fazer as coisas, mas foi um começo. Da próxima vez que acontecer farei as coisas um pouco diferente. Saberei (não apenas intelectualmente) que não é a hora perdões, que o perdão é uma meta de longo prazo e um processo de relembrar o sofrimento de uma forma construtiva. E isso leva mais tempo do que um encontro! Saberei como cuidar de mim um pouco melhor. Não terei nenhuma expectativa de tomada de decisão no final (embora ache que é bom que exista espaço para isso). E haverá uma próxima vez. Ainda que deseje que possamos acabar com o estupro e a violência para sempre, sei que temos uma longa luta pela frente.

Eu quero escrever mais sobre o que aprendi com o processo, mas acho que é impossível categorizar todas as questões e ideias que surgiram para mim em uma bagunça de pessoal e político; preciso de muito mais leitura e luta para que possa articular tudo isso. A liberdade é um ofício ao longo da vida. Mas posso compartilhar a coisa mais importante que aprendi, e isto de Zoe tanto quanto de todas as outras participantes: não somos apenas mais fortes do que eles podem imaginar, somos também mais fortes do que NÓS imaginamos.

Continuem lutando!

Jen

* os nomes foram alterados.