(Introdução do livro: A Economia Parasitária de Raoul Vaneigem – Tradução Júlio Henriques; adaptação Rodolpho Knup)
Encontramo-nos, no mundo e em nós mesmo, numa encruzilhada de duas civilizações. Uma acaba de se arruinar esterilizando o universo debaixo de sua gélida sobra, a outra descobre, nos primeiros vislumbres duma vida a renascer, a pessoa nova, sensível, viva e criadora, frágil ramo duma evolução em que, doravante, o homem econômico passou a ser um ramo novo, e apenas isso.
Nunca o desespero de termos que sobreviver em vez de vivermos atingiu no tempo e no espaço existencial e planetário uma tensão tão extrema. Também nunca como agora foi universalmente pressentida a existência de se privilegiar o vivo perante o totalitarismo do dinheiro e da burocracia financeira.
Nunca, em suma, tantas populações e seres particulares foram tomadas de uma desordem em que se misturam a mais amedrontada servidão voluntária e a tranquila resolução de destruir, sob as vagas do prazer e da vida, os imperativos mercantis que emparedam o horizonte.
Pela primeira vez na História, cria-se uma verdadeira internacional do gênero humano. Constrói-se por instigação da mulher, sob a força irresistível da sua libertação. Não a regem decretos nem estatutos. Basta-lhe, para existir, a individual e coletiva vontade de viver que de Chipas aos Urais uma humanidade inventa – esse cujo nome o velho mundo usurpava para lhe negar tal qualidade.
Ter consciência disto é o mais importante, visto que esta internacional está hoje no âmago do nosso cotidiano.
Pode parecer vão lembrar em algumas páginas as relações de um estado de corrupção que em poucos anos gangrenou, com os mais diversos pretextos, aquilo que se diz, se pensa e se empreende. O que mais desejei foi extrair dessas relações alguma luz a propósito do debate a que, segundo me pareceu, ninguém pode furtar-se: ou morremos de raiva resignada de uma sociedade que se enterra no tédio e na desumanidade, ou atingimos o prazer de viver, afrontando quem quer se atravesse, em nome da economia, no nosso caminho.
Se daquilo que escrevi pouco foi ouvido, nada pelo menos terá sido recuperado pelo mundo onde dominam a realidade da morte e a sombra de uma vida ausente. Em algum passo incerto, inaptidão ou erro em que me tenha visto, nunca deixei de voltar ao princípio duma existência sempre recomeçada, ao próprio lugar onde se opera uma mutação que a nossa civilização moribunda sempre decretou como impossível.
Aprendo a querer tudo e a nada esperar, guiado pela única perseverança de ser humano e a consciência de não ser bastante.
