A erva daninha subversiva[1]
A tentação é forte para a/o anarquista: “autogestão” é uma palavra nova para uma coisa velha, melhor, para muitas coisas velhas, porque também esta palavra, como quase todas as palavras do vocabulário econômico, político e social, pode significar mais do que uma coisa.
No seu significado mais amplo, “extremista”, autogestão é sinônimo, se não de anarquia, pelo menos de autogoverno (um termo do velho léxico anarquista). É o que sustenta, por exemplo, Philippe Oyhamburu que, confrontando as asserções dos “autogestionários” com o pensamento as realizações anarquistas, revela que o movimento autogestionário não só retoma a maior parte da temática libertárias, mas chega a enunciá-los palavra por palavra. Ademais, o termo jugoslavo samoupravlje, cuja tradução “nasceu” no início dos anos sessenta a palavra “autogestão”, parece uma variante servo-croata do russo samoupravljanje, já usado por Bakunin, que se pode traduzir tanto como autodeterminação como autogoverno.
No seu significado mais reduzido, autogestão é sinônimo de cogestão, isto é, de participação subalterna dos trabalhadores, ou seja, colaboração interclassista, sendo assim, de engano. E entre um extremo e outro , existem todas as nuances intermediarias possíveis de significados e de escolhas teórico-práticas do socialismo, do sentido libertário ao autoritário e do sentido revolucionário ao reformista.
Portanto, é forte a tentação de acabar com o assunto, sobretudo do uso inflacionado e mistificador do termo, que só nos pode irritar (são as férias “autogeridas oferecidas por agencias turísticas, é a propaganda eleitoral televisiva “autogerida” pelos partidos…). Contudo, acreditamos que, por trás do sucesso da palavra, existe algo a mais e mais importante que uma enésima de mistificação e uma sutil recuperação, sob nova terminologia, da tradição anarquista. O próprio esforço de mistificação e a própria tentativa de recuperação são, já em si, significativos de uma “procura” social à qual se referem a mistificação e a recuperação
Uma procura de anarquismo
O fato é que a autogestão foi antes de tudo uma reivindicação e uma prática social amplamente difundida ao longo da última década (década de 70 [N.T.]). O boom da autogestão é talvez, do ponto de vista anarquista, o fenômeno cultural mais importante desde o pós-guerra. E por fenômeno cultural não entendo tanto o florescer de textos sobre autogestão, que considero mais o efeito do que o boom, quanto o multiplicar-se de comportamentos autogestionários nos conflitos sociais, sobretudo a partir de 1968, mas já pré-anunciados nos anos precedentes.
Uma vontade crescente de autodeterminação individual e coletiva foi-se manifestando (ás vezes de modo nítido, mais frequentemente de forma confusa e contraditória, mas sempre “legível”) de mil maneiras: das comunidades hippies às ocupações de fábricas, das lutas estudantis ao movimento feminista, da recusa pela delegação à procura de relações interpessoais diferentes… Entre o “on fabrique, on vend, on se paie”[2] da LIP[3] e “o corpo é meu e sou em que mando nele” há continuidade, existe de fato uma multiplicidade dessa procura social de autogestão a todos os níveis, que se traduz em uma desestruturação do poder em todos os macro e microssistemas onde o poder se manifesta: da família ao Estado, passando pela fábrica, o bairro, a escola, o hospital, o sindicato, o partido….
Rejeição ao poder ou procura de poder? Os reformistas e os revolucionários autoritários preferem qualificar esta procura social como procura de poder: mas ainda é poder aquilo que não quer ser faculdade de “comandar e ser obedecido”, mas sim faculdade de decidir autonomamente? A aspiração autogestionária parece-nos mais o equivalente libertário em termos de poder, daquilo que é a aspiração socialista libertária em termos de propriedade. Esta requer uma socialização do poder.
Ora, um poder socializado, quer dizer, não concentrado em papeis sociais determinados (e por isso em indivíduos e classes dominantes), mas difundido em todo o corpo social e nas suas articulações como função universal e igual, pode corresponder a uma boa aproximação de anarquismo. Se não do anarquismo-ausência-de-poder (conceito limite como formas geométricas), pelo menos àquele modelo dinâmico entre o modelo ideal e os vínculos dos contextos materiais e culturais dados, a que poderíamos chamar de “anarquismo possível”. Mas um poder socializado pode também ser entendido, pelo contrário, como um abominável instrumento de controle autoritário onipresente, no qual o poder se torna uma função universal ainda que desigual (graduada do vértice à base), num cambiante contínuo que envolve todos os papéis de opressão recíproca. Brrr….
Meio, fim ou método?
Uma abordagem séria e profunda à temática autogestionária configura duas utilidades possíveis – e, a meu ver, fundamentais – para os anarquistas:
- Refletir sobre os conteúdos e as formas mais avançadas (em termos igualitários e libertários) assumidos pelos conflitos sociais contemporâneos e, ao mesmo tempo, sobre as respostas dadas pelas classes dominantes;
- Refletir sobre os problemas do anarquismo possível, quer dizer, sobre os problemas da reconstrução social, da reestruturação global do tecido comunitário segundo modelos não hierárquicos.
Assim, acredito que o debate sobre autogestão seja uma ocasião importante para os anarquistas. Se a procura de autogestão é, em certa medida, uma “procura de anarquismo”, não é preciso adicionar um par de slogans ao nosso repertório de palavras de ordem, mas extrair dela indicações para nosso agir. Se sociólogos, economistas, filósofos, psicólogos, pedagogos e urbanistas, utilizam, cada vez mais, a chave autogestionária para uma abordagem quase-anarquistas às ciências humanas e propõem soluções quase-anarquistas para problemas sociais, não basta felicitarmo-nos pelo fenômeno e muito menos reivindicar a propriedade daquele método, é preciso trabalhar seriamente para nos propormos como ponto de referência cultural libertário credível aqui e agora… Se políticos, burocratas e tecnocratas tagarelam sobre autogestão, ou pior, estão realizando e elaborando versões parciais e distorcidas, é inútil gritar “ladrões!”, devemos é desmistificar o seu jogo com argumentos convincentes e com lutas exemplares.
A autogestão não deve ser, entenda-se, um simples pretexto para “refrescar” o nosso “belo ideal”. Trata-se, muito pelo contrário, de operar uma verdadeira atualização da nossa bagagem cultural e de atuar de mais útil, isto é:
- A partir de instâncias reais e não só de uma exigência nossa, individual e/ou do movimento;
- Organizando a nossa reflexão ao redor de um conceito que constantemente nos lembra a consistência das formas organizativas.
Com isto não quero dizer que todo o trabalho teórico-prático de redefinição do projeto anarquista seja reduzido, de forma simples, a categoria de autogestão. O conceito de autogestão em si não pode de maneira alguma substituir-se à riquíssima problemática dos fins e dos meios do anarquismo, que se alimenta de uma vasta gama conceitual de ordem ética, estética e cientifica…
Na realidade, o âmbito próprio da autogestão não é o dos fins, nem o dos meios, ao contrário do que poderá parecer, de vez em quando, pelas suas manifestações individuais nos conflitos sociais, mas sim o âmbito intermediário do método, o âmbito das relações entre fins e meios. Mesmo participando de ambos, a autogestão não é um fim (ou uma soma de fins), nem um meio (ou uma soma de meios), mas um modo de procurar e exprimir a coerência entre esses e aqueles em termos organizativos e em relação seja à crítica teórico-prática do existente, seja à proposta de estruturas sociais alternativas.
Definir autogestão como método organizativos pode parecer restritivo. Na realidade, isso quer dizer que se lhe atribui uma importância central. Significativamente, as grandes fraturas no seio do movimento socialista verificam-se não a propósito dos fins, que pareciam ser os mesmos, , mas sobre o método: sobre escolha dos meios sobre a sua coerência com os fins. Definir a autogestão como método significa também negar-lhe a neutralidade de uma simples técnica, boa para todos os usos, para atribuir-lhe uma funcionalidade específica em relação aos valores de liberdade e igualdade a ela adequados.
Entre teoria e prática social
A autogestão entendida como fim parece-me derivar de – e/ou levar a – uma concepção terrivelmente limitada e limitativa da sociedade e das pessoas. A autogestão entendida como meio presta-se a usos mistificadores, deixa-se inserir, sob uma forma mais ou menos insignificante na descentralização do poder, em novos sistemas tecnoburocráticos “participativos”. Ambos podem dar lugar a formas novas e obscenas de “interiorização” do poder, isto é, a um autocontrole “induzido”, a uma autodisciplina “pilotada” numa sociedade hierárquica, ou seja, a uma auto-exploração, a uma dominação “consensual”.
Vice-versa, concebida como método e colocada em posição de charneira[4] , não só entre meios e fins, mas também entre teoria e prática social, a autogestão pode exprimir toda a riqueza e toda a problemática do conflito e do pensamento anti-hierarquico e antiburocrático. Nessa condição, pode tornar-se um formidável instrumento lógico e operacional. Um instrumento subversivo, não integrável em sistemas sociais e conceituais classistas, porque é irredutivelmente libertário e igualitário.
Tal riqueza, de resto, já é em parte verificável nos fatos, isto é, na multiplicidade das reivindicações autogestionárias expressas pelas lutas sociais e, para além disso, no pensamento dos teóricos da autogestão generalizada, os quais, embora na sua maioria de formação marxista, chegaram não por acaso a posições substancialmente anarquistas de recusa do Estado e de toda a hierarquia, do partido e de qualquer vanguarda….
O fato é que a autogestão, como diríamos, só é uma metodologia organizativa de sinal libertário e igualitário se forem plenamente aceitas, em profundidade e em extensão, todos os seus pressupostos e todas as suas implicações. Ou seja, quando se estudam as condições necessárias para que qualquer indivíduo possa ser verdadeiramente sujeito e não objeto das escolhas que lhe dizem respeito e quando, por coerência necessária, se alarga o campo de aplicações da autogestão do limitado microcosmo empresarial a todas as esferas e a todos os níveis da vida social. A autogestão generalizada torna-se assim uma dimensão cultural, na qual se encontram: revoltas individuais e coletivas contra toda e qualquer forma (econômica, política, sexual, étnica, ideológica…) da relação de dominação; tentativas (grandes e pequenas, revolucionárias e marginais) e experiencias (extra ou anti-institucionais) para refundar, sobre novas bases, a vida coletiva; tensões ideais e pulsões emotivas irredutíveis às necessidades reconhecidas e mais ou menos satisfeitas pelos grandes sistemas hierárquicos; esforços para repensar a sociedade e, portanto, as pessoas, para encontrar novas abordagens e/ou chaves de leitura da história.
Mas está autogestão generalizada não se configura, ou não tente a configurar-se, mais como um verdadeiro e próprio sistema do que como um método? Por exemplo, como modelo alternativo da sociedade global com poder socializado, não acaba por ser anarquismo possível? Sim, mas porque nesse sistema, nesse modelo, nessa dimensão cultural, não introduzidos critérios de julgamento (valores) e critérios cognitivos (modos de selecionar e organizar os dados para transforma-los em informações) que, ainda que derivados ou extraídos do método organizativo, não são mais método, não são mais autogestão. E porque a autogestão não é método neutral, aquilo que dela deriva por indução ou dedução tem o selo anarquista, ou melhor, tanto mais anarquista quanto maiores forem o seu aprofundamento e a sua extensão.
Enxertar e podar o velho tronco
A autogestão generalizada pode bem ser, então, um outro modo de dizer socialismo libertário. Nada de novo? Pelo contrário: trata-se de um socialismo libertário reencontrado, ou melhor, reconstruído nas lutas, nas experiências, nas inovações cientificas e técnicas, numa palavra, na cultura destas últimas duas décadas[5].
A autogestão generalizada é uma teoria ainda em construção, como deve ser qualquer teoria viva, mas já definiu referências que correspondem às nossas próprias referências. O que não surpreende, visto que percorreu, grosso modo, os mesmos itinerários lógicos que percorridos por nós ontem e hoje.
Enunciados gerais, como o “primeiro princípio da autogestão” definido por Bourdet (recusa da delegação de poder, revogabilidade de todos os mandatos em qualquer momento), dão aos anarquistas, que sempre os teorizaram e praticaram, a impressão de uma descoberta… óbvia. Mas não podemos e não devemos limitar-nos a encarar o fenômeno com desconfiança ou com satisfação, mas sim, antes que a pilhagem – mais ou menos voluntária – e a reciclagem dos nossos ideais seja irreversível, devemos acelerar a “reestruturação” do nosso capital teórico. Um capital obsoleto, não nos enunciados gerais – que justamente se confirmam validos também no debate sobre autogestão – mas em toda a sua articulação intermediária e nos instrumentos operacionais.
A ecologia, a tecnologia alternativa, a pedagogia antiautoritária, a análise institucional, não podem ser simplesmente adicionadas ao pensamento anarquista, como não se podem adicionar-lhe mecanicamente fragmentos ocasionais, de selo anarquista, das ciências humanas, da antropologia à economia, da psicologia à sociologia. A operação que desejo é bem mais complexa. O velho e sólido tronco do anarquismo ainda é vigoroso, mas deve ser energeticamente podado, para que possam brotar e desenvolver-se ramos jovens e para que possa acolher novos enxertos, sem rejeita-los ou sufoca-los. O florescer da prática e da teoria autogestionária parece-me, de fato, uma boa ocasião para podar e enxertar. Do debate sobre autogestão podemos extrair elementos para decidir o que podar e o que enxertar.
Sem complexos de inferioridade imerecidos, mas também sem complexos de superioridade ilusórios, os anarquistas podem esperar, do debate sobre autogestão, uma contribuição preciosa de abertura em direção ao novo e ao diferente, de estímulos criativos, de advertência a não esconder os seus problemas não resolvidos, tampando o sol com uma peneira. Por sua vez, eles podem levar ao debate a contribuição preciosa da memória coletiva que viveu conscientemente (consciente também das próprias contradições) toda a problemática da autogestão através das conquistas e derrotas, das alegrias e dos sofrimentos, das lutas e da vida cotidiana, do coração e do cérebro de centenas de milhares de militantes.
[1] Texto apresentado na revista de estudos “Autogestione”, Veneza, 28-30 de setembro de 1979 e publicado posteriormente na revista “Interrogations”, no mesmo ano.
[2] “Nos produzimos, nos vendemos, nós nos pagamos” Slogan operário francês.
[3] Experiência de autogestão da fábrica de relógios LIP, em Besançon, França, iniciada em 17 de abril de 1973.
[4] . Peça composta por duas partes que ligam ao mesmo eixo, permitindo movimento em portas, janelas, tampas, abas de mesa, etc. = DOBRADIÇA; Extremidade (de correia, cilha, etc.) que, dobrada e cosida, segura uma fivela; [Figurado] Pessoa ou coisa que une partes diferentes, que serve à união de dois grupos ou mundos diferentes. “charneira”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/charneira [consultado em 06-01-2020]. [Nota do Editor]
[5] Anos 1950 e 1960 (N.E.)