A Responsabilidade de Pertencer a uma Coletividade – VIA Rede de Informação Anarquista

A responsabilidade de pertencer a uma COLETIVIDADE

Nota: Trataremos aqui como “COLETIVIDADES” todo grupo de pessoas que se organizam em Coletivos, Grupos de Afinidade e ou Organização propriamente dita.

1° Definição básica de COLETIVIDADE

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Grupo de pessoas que decidiram se juntar para formar uma COLETIVIDADE, para que assim em conjunto exerçam algum tipo ou forma de atividade política ou não.

Ao levantarmos bandeiras como luta pela liberdade, luta contra toda forma de opressão, destituição do Estado e outras comumente encontradas nas frentes libertárias, nós acumulamos RESPONSABILIDADE. Essa responsabilidade vem de cada luta que escolhemos, de cada posicionamento político que adotamos, não sendo apenas uma responsabilidade de um sujeito consigo mesmo, mas, principalmente, com as outras pessoas ao seu redor.

“O homem isolado não pode ter a consciência de sua liberdade. Ser livre, para o homem, significa ser reconhecido, considerado e tratado como tal por um outro homem, por todos os homens que o circundam. A liberdade não é, pois, um fato de isolamento, mas de reflexão mútua, não de exclusão, mas de ligação; a liberdade de todo indivíduo é entendida apenas como a reflexão sobre sua humanidade ou sobre seu direito humano na consciência de todos os homens livres, seus irmãos, seus semelhantes.

Só posso considerar-me e sentir-me livre na presença e em relação a outros homens.

(…) Só sou verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, são igualmente livres. A liberdade do outro, longe de ser um limite ou a negação da minha liberdade, é, ao contrário, sua condição necessária e sua confirmação. Apenas a liberdade dos outros me torna verdadeiramente livre, de forma que, quanto mais numerosos forem os homens livres que me cercam, e mais extensa e ampla for a sua liberdade, maior e mais profunda se tornará a minha liberdade. Ao contrário, é a escravidão dos homens que põe uma barreira na minha liberdade, ou, o que é a mesma coisa, é a sua animalidade que é uma negação da minha humanidade porque, ainda uma vez, só posso considerar-me verdadeiramente livre quando minha liberdade, ou o que quer dizer a mesma coisa, quando minha dignidade de homem, meu direito humano, que consiste em não obedecer a nenhum outro homem e a só determinar meus atos de acordo com minhas próprias convicções, refletidos pela consciência igualmente livre de todos, me são confirmados pela aprovação de todos. Minha liberdade pessoal assim confirmada pela liberdade de todos se estende ao infinito.”

Bakunin

A afirmação individual de liberdade, quando não é acompanhada por uma afirmação de liberdade coletiva, tende a reproduzir relações de poder entranhadas em nossa sociedade, gerando cerceamento, silenciamento e outras restrições do livre desdobramento dos potenciais do outro. Daí vem a importância de pensar a diferença entre INDIVIDUALIDADE e COLETIVIDADE.

Uma COLETIVIDADE é o rosto público de um agrupamento de pessoas, seus posicionamentos no mundo são o reflexo direto do consenso ou da melhor forma que essa coletividade encontrou para contar sua história, para se posicionar em suas lutas. Esses posicionamentos são definidos, na maioria das vezes, pela forma ideológica que as COLETIVIDADES assumem, sejam elas comunistas, anarquistas, quilombolistas, liberais etc.
Essas formas ideológicas podem informar também o tipo de tomada de decisão a ser usado coletivamente. Independente de qual seja o método escolhido, uma coletividade organizada horizontalmente não deve permitir que desejos de uma pessoa ou de poucas pessoas definam os rumos da coletividade em questão. O exercício da liberdade individual em detrimento do coletivo e da liberdade individual do outro é algo a ser trabalhado, problematizado, amenizado e, na medida do possível, extinto – o que não significa inibir expressões individuais, mas sim as expressões INDIVIDUALISTAS que ocorrem pela falta de responsabilidade com a coletividade e com o outro.

É preciso pontuar também que, assim como existem coletivos e indivíduos, existem problemas coletivos e individuais. Exemplo: quando o membro de uma coletividade se comporta de modo nocivo, isso se torna um problema coletivo, assim como o possível silêncio sobre suas ações. Os outros membros desse coletivo devem trabalhar para oferecer uma resposta coletiva, e não individual. A organização coletiva demanda que a responsabilidade seja também coletiva, e não distribuída de forma desigual entre membros. Quando as pessoas se furtam dessa responsabilidade, a própria coletividade se perde e os comportamentos individualistas – inclusive os nocivos – acabam tomando conta. 
É preciso que o coletivo se posicione – e isso não significa um anúncio público que pode até mesmo não ser acompanhado de medidas efetivas, mas uma tomada de decisão coletiva. E, se o coletivo também possui um rosto, o modo como ele vai aparecer publicamente também deve ser definido coletivamente. Mas isso nunca deve tomar a forma de um corporativismo que reproduz o pior em nossa cultura: proteger o coletivo de uma eventual imagem negativa derivada dos comportamentos de um de seus membros (ou de mais de um) não deve ser uma prioridade, e sim a eliminação desses comportamentos e o acolhimento das pessoas afetadas por eles. Uma COLETIVIDADE não pode e não deve estar acima do bem e do mal, e nem sua existência deve ser colocada acima da resolução de seus problemas. A isso damos o nome de “passar panos quentes”.

A omissão, o silenciamento, o “tirar o corpo fora” e tudo que converge na ausência de tratamento coletivo de atos de um indivíduo pertencente a uma COLETIVIDADE só reafirmam as opressões e relações desiguais de poder já presentes na sociedade. Se o indivíduo é protegido em seus comportamentos nocivos, sua liberdade para tais comportamentos é legitimada e autorizada pela coletividade. Essa liberdade em nada difere da liberdade capitalista de poder fazer o que se bem entende sem preocupações com as pessoas ao redor e com o ambiente. Essa liberdade também interdita as possibilidades de ação das outras pessoas presentes na coletividade – e até mesmo de pessoas que se encontram próximas mas do “lado de fora”.
Muitas pessoas entendem que uma COLETIVIDADE e suas ferramentas devam servir de promoção pessoal mas não consultam a coletividade sobre isso. Muitas pessoas SE ESCONDEM atrás do rosto da COLETIVIDADE pra fazer certas coisas. Se uma liberdade é privilegiada, há hierarquia. Se uma pessoa PODE MAIS, há hierarquia. Se, além disso, essa pessoa pode usar os recursos coletivos para realizar seus desejos pessoais, sem se importar com o consenso ou com a decisão coletiva, então há também PRIVATIZAÇÃO desses recursos. Isso pode acontecer tanto por falta de uma decisão coletiva (reuniões, encontros presenciais e tudo que envolva a discussão na coletividade) quanto por desrespeito a uma decisão já tomada.
Uma boa COLETIVIDADE seria aquela onde a liberdade individual não está acima dos desejos de outros indivíduos do grupo e não está acima de consensos coletivos. Então os membros deveriam ter basicamente a mesma liberdade – isso significa que não poderia haver hierarquias (sejam elas por tempo, produção e ou atividade desempenhada), silenciamentos (tanto internamente quanto externamente), privatizações e uma série de outras coisas que limitam o exercício dos potenciais de cada pessoa. Um exemplo clássico disso é a pessoa se sentir constrangida de participar, de falar em reuniões, de dar suas ideias, de votar de modo divergente etc. Então é RESPONSABILIDADE da COLETIVIDADE desfazer isso em vez de naturalizar.

Chegamos aqui a duas linhas: Restrição da Liberdade Liberal individual x Dissolução dos constrangimentos a Liberdade dos membros e ou dos constrangimentos do potencial e do poder dos membros. Há muitos casos em que as pessoas reivindicam para si uma liberdade revolucionária que acaba sendo a realização deu sua vontade pessoal, prejudicando a COLETIVIDADE e outras pessoas individualmente. Sendo assim, não há nada de revolucionário ou de libertário em fazer o que se quer na hora que se quer.
É importante dizer que coletividades criam documentos como linhas editoriais, cartas de princípios, estatutos etc. Esses documentos servem de uso interno de caráter normativo para essa COLETIVIDADE e também para comunicar ao resto do mundo o funcionamento dela. Eles definem em parte o modo como essa coletividade será conhecida publicamente, e ajudam pessoas que não fazem parte dela na identificação de comportamentos que violam seus princípios. Se esses documentos são produzidos coletivamente, eles devem ser respeitados – e isso inclui também a possibilidade de contestação, crítica e revisão, desde que isso seja feito segundo os acordos coletivos. Uma pessoa não pode suspender a regra para fins pessoais. Se uma pessoa pode não seguir a regra, isso significa novamente que ela pode exercer algo que o resto não pode. Isso significa que ela está livre de uma maneira que as outras pessoas não estão.

Muitas pessoas entendem que a atitude revolucionária ou libertária é aquela que não conhece ordem, norma ou regra. É aquela que não pode ser acorrentada por acordos coletivos. Isso é apenas uma forma de mascarar AUTORITARISMOS, já que não é possível viver coletivamente sem normatividade alguma – o que não significa que algumas normas sejam melhores ou menos violentas que outras. Não seguir regra alguma significa restringir a liberdade alheia. Além disso, acordos coletivos envolvem esforço e investimento dos membros de uma coletividade, e é preciso respeitar o trabalho alheio, o que nada tem a ver com aceitação acrítica.