Texto retirado de: http://www.nu-sol.org/wp-content/uploads/2018/03/flecheira492.pdf
execuções e sumidouros
Ela foi executada. Marielle foi morta a tiros, três dias após veicular o extermínio de jovens em Acari pela polícia, encontrados em uma vala. Crianças, jovens, homens, mulheres são mortos aos montes, todos os dias no país, pela polícia, pelas forças armadas, por milícias, por justiceiros, por pistoleiros, por vingadores, por proprietários que contratam mãos e pés que façam o trabalho “sujo” por eles. A polícia e as forças armadas terceirizam execuções e sumiços, assim como lançam mãos e pés, sob mil formas, para dar cabo do que consideram imundo, descartável, dejeto nas ruas, ou simplesmente

usam de mil subterfúgios para executar “a limpeza”. Mata-se aos montes!

onde estão?
Gente, também, some aos montes. No Rio de Janeiro, desde a instalação inicial das UPP’s o número de desaparecidos é maior do que o de mortos. Gente some aos montes pelo país inteiro. Onde estão estas pessoas? Nas valas? Nos sumidouros? Nas mãos de milicianos? Nas mãos da polícia? Nos cemitérios clandestinos? Nas mãos de comandos e empresas? Nas fotos de corpos irreconhecíveis nas gavetas de alguma delegacia ou necrotério? Eles foram tragados ali, entre os dentes do capitalismo e do Estado, da lei e de sua contrapartida ilegal que garante o seu funcionamento e assegura a propriedade e o mercado legal e ilegal. Eles, também, foram tragados ali entre os dentes de cada fascista. Eles foram tragados ali, também, entre os dentes de todos que vivem do espetáculo da denúncia, dos que clamam por combate à impunidade e punições exemplares, dos que rogam por “justiça, segurança e paz”. É preciso não esquecer: não há Estado que não seja penal!

limites da tolerância
O Estado é máquina de moer gente. Funda-se sobre o extermínio sistemático de muitos para a
defesa de alguns. Até o dia 14 de março, Marielle poderia servir de exemplo da resiliência que
reveste a crença na meritocracia: apesar de ser uma mulher negra e nascida na favela, frequentou a
universidade como bolsista e tornou-se uma das vereadoras mais votadas do Rio de Janeiro no
último pleito, com a maioria dos votos angariados não na sua região de origem, o Complexo da Maré,
mas em zonas de classes médias altas da cidade, como Leblon e Copacabana. Os quatro tiros
disparados em sua cabeça foram um claro recado de demarcação de limites. A execução de Marielle
escancarou o sangue que azeita as engrenagens do Estado. E é insuportável!
limites da representação
Uma mulher preta, nascida na favela, foi eleita vereadora, na segunda maior cidade do país, com a 5º maior votação. Incomodou milícias, polícias em geral, e até certas ONGs que disputam o governo de áreas miseráveis. Recebeu como resposta quatro tiros de balas 9mm que perfuraram sua cabeça, no centro da cidade, área sob intervenção militar. A execução de Marielle explicitou os limites da representação e a falácia do discurso da segurança: nenhuma autoridade eleita está imune à execução. A intervenção militar encontrou sua justificativa suplementar. O recado foi dado: as
minorias, mesmo empoderadas, são carne a ser moída pelo Estado.

trocando em miúdos
O pacote é o seguinte: polícia levar tiros é constitutivo de seu funcionamento; parlamentar ser alvejado é algo que não se espera.

o delegado e os cadáveres
A justificativa da intervenção federal no Rio de Janeiro, com base na instauração da paz ou na garantia de segurança para o cidadão carioca, ainda não mostrou o poder de sua retórica. O delegado em Brasília, após a morte de Marielle, fez um pronunciamento sobre o caso. Declarou que a intervenção no Rio de Janeiro serve para reestabelecer a paz, a ordem, “acabar com o banditismo desenfreado” e garantir o Estado democrático de direito. O coronel porta-voz do Comando Conjunto anunciou que as mortes por “balas perdidas” no Complexo do Alemão, na noite do dia 16, confirmam
o motivo pelo qual foi decretada essa intervenção. O cidadão-polícia, zeloso da ordem do justo, suplica pela investigação dos casos e pela punição dos responsáveis. Não compreende – propositalmente ou não – que a ordem democrática é esta que aí está: combinação de gestão da miséria com extermínio permitido, inevitável, desejado.

a guerra. onde está a guerra?
No Complexo do Alemão, entre os mortos, estava uma criança de menos de dois anos que a caminho de comprar um doce recebeu um não-programado tiro na cabeça. Enquanto a mãe abraçava desesperadamente a cabecinha de seu filho, explodida pelo tiro, um policial gritou: “sai da frente negona!”. A avó desesperada foi contida por outro polícia que a agarrou, rasgou sua blusa, deu um tapa em sua cara e gritou em seu ouvido: “Matou! Está morto! É a guerra!”. Este é o dia-a-dia do racismo e violências do Estado em defesa da propriedade. Na Vila Kenedy, complexo considerado “laboratório da intervenção no Rio de Janeiro”, um morador resume: dali “só não sai quem não pode”.

procedimento padrão
Na noite anterior à execução de Marielle foi noticiada uma “falha de militares durante abordagem em uma operação na favela”. Na madrugada do dia 3 de março, dois jovens moradores da Vila Kennedy, foram parados em bloqueio em um dos acessos à favela. Documentos e “antecedentes” checados; carro, pertences e jovens revistados pelos milicos; procedimento padrão cumprido. Quando foram liberados, um homem avançou em direção ao bloqueio e “desacatou” os oficiais que, antes de detêlo, dispararam um spray de pimenta. O spray foi jogado dentro carro onde estavam os dois jovens, que saltaram do veículo. Um deles fugiu e o outro foi preso “em flagrante por desobediência”. Ele
passou 36 horas sequestrado pelo exército, sendo inquirido e levado como carga para delegacias, para Vila Militar, para Benfica. Tudo isso, junto ao outro homem, o “embriagado” que “desacatou” os milicos, o “culpado” que não virou notícia. O exército justifica que queria atingir “somente o indivíduo que demonstrava contrariedade com a ação de revista da tropa. Entretanto, por se tratar de uma substância gasosa, durante sua propagação, pode ter atingido outras pessoas, fato que não justificaria uma atitude hostil contra a tropa”. Mais um inquérito será instaurado para investigar o caso. Explicita-se o procedimento padrão cujo ápice é a execução sumária sob a designação de autode resistência.

um, dois e três…
Na semana passada, duas lideranças do ex-partido do governo apoiaram a intervenção militar no Rio de Janeiro. O primeiro, líder do partido no senado, defendeu em entrevista a ampliação da intervenção para o todo território nacional. O segundo, governador da Bahia, declarou que era preciso ampliar as escolas militares, visto que nestas o resultado obtido por alunos era acima da média. E como se não bastasse, um terceiro, intelectual orgânico do referido partido declarou em alto e bom som: minha geração fracassou!

coisa de filho de chocadeira:
Na manhã do dia em que Marielle foi executada, o prefeito da cidade de São Paulo “mandou bater, tacar bomba de gás e atirar balas de borracha nas tiazinha da escola”.

perguntar ofende?
Foi a milícia? Foi a intervenção? O que se espera da comoção midiática? Quantos mais? Quantas mais? Teremos uma guerra entre a polícia e o exército? Qual é o acordo? Qual será o acordo? Um jogo de soma zero? Resta um? Qual? Quem? Para que serve? O que se sabe é que os corpos são sempre empilhados do mesmo lado. Terrorista é o Estado! O resto é politização do cadáver.

15 de março, anotações menores
No fim da tarde da última quinta-feira, dia seguinte à execução de Marielle, o vão livre do MASP e as duas faixas da Avenida Paulista foram tomados por milhares de pessoas. Somado aos pronunciamentos de mulheres militantes, ouvidos com atenção, cartazes estampavam “Marielle presente”, “vidas negras importam”, “parem de matar a gente”. De tempos em tempos, ecoava o coro: “não acabou, tem que acabar e eu quero o fim da polícia militar”, ou “machistas, fascistas, não
passarão”. Eis que no início da noite, em meio às homenagens a Marielle e à tristeza escancarada, irrompe um grupo de mulheres negras tocando tambores. Não foi preciso mais palavra alguma. O deslocamento destas mulheres com o batuque moveu a manifestação para fora do vão livre. Por um instante, o luto deu passagem à perspectiva de uma luta vigorosa. Diante do acontecimento, um

haicai:
coro das mulheres
vão livre do museu
nunca é em vão
e…
Comenta-se, em São Paulo, que o padre Júlio Lancelotti está marcado para morrer porque “atrai
mendigos”.