por Rogério Nascimento*
O movimento anarquista no Brasil tem um percurso tão longo e rico quanto desconhecido não só pela população em geral, mas por estudiosos e grande parte dos militantes atuais. Isto se deve a vários fatores impossíveis de ser devidamente analisados com profundidade no momento, mas cabe destacar alguns. Por um lado, é um movimento que tem sofrido muitas perdas, situa-se junto a tantos outros reprimidos e perseguidos pelos representantes governamentais e poderes econômicos. Por outro, uma dita história oficial e oficiosa (a da chamada “esquerda”) não tem poupado esforços em eclipsar determinados aspectos do processo histórico e dos movimentos sociais estabelecidos desde quando os europeus invadiram estas terras, cerca de 500 anos atrás. No geral e na medida do possível, esta história “esquece” certos aspectos ou mesmo alguns movimentos sociais ou, de outra maneira, quando constrangida por exigências da conjuntura, expõe “fatos” distorcendo-os e criando uma imagem que nem de longe toca à diversidade de propostas, de discussões, de experiências vividas nos movimentos ou fatos históricos em questão.
Pretendemos mostrar alguns aspectos da construção do movimento anarquista no nordeste brasileiro
particularmente em sua vertente anarco-punk num período histórico recente. Esperamos contribuir com um registro — muito limitado, diga-se de passagem, por conta da dificuldade em juntar e compilar os dados — acerca de uma vivência ácrata que já tem acumulado importantes experiências.
Nossa estratégia é esboçar esta trajetória a partir do surgimento de grupos anarco-punks
na Paraíba, especificamente nas cidades de João Pessoa e Campina Grande, evidenciando o processo de formação, transformação e articulação destes grupos até um esboço do panorama atual deste movimento.
Antes do surgimento de grupos anarco-punks em João Pessoa, em meados da década de 80, havia um núcleo pró-COB, Confederação Operária Brasileira, com o objetivo de fazer crescer o anarco-sindicalismo.
No início de 1991 aconteceu o 5º Congresso pró-COB. Neste encontro um novo núcleo, Belém/PA, foi aceito como parte do movimento pró-COB, ao passo que o de João Pessoa rompeu com o movimento por discordar da orientação estritamente sindicalista. Antes disto, dividiam atividades e tarefas entre os núcleos das cidades de Porto Alegre/RS, Belo Horizonte/MG, Brasília/DF e Curitiba/PR. A publicação do jornal da COB, “A Voz dos Trabalhadores”, era tarefa de todos os grupos, mantendo a edição mensal em formato de mural. Procuravam, também, articulação com outros grupos de expressão social e popular.
O surgimento do primeiro grupo anarco-punk em João Pessoa/PB foi em 1988. Era o GAL, Grupo de Ação Libertária, formado por membros do núcleo pró-COB e outras pessoas. O GAL promoveu estudos do anarquismo e ações na cidade como distribuição de mudas de plantas e panfletagens. No entanto, os contatos com grupos punks tiveram início já em 1986, através do programa semanal de rádio “Jardim Elétrico” em que sons metal, punk e hardcore eram tocados. Os sons de bandas punks eram trazidos de São Paulo por um dos membros da banda “Restos Mortais”/JP. Assim, alguns membros do pró-COB souberam da realização de um show no teatro Lima Penante, organizado pela “Restos Mortais”. Neste show conheceram Jean, Renato e Tampinha da banda “Devastação” de Natal/RN. A partir deste encontro mantiveram contatos por meio de eventos e shows. Ainda neste ano houve em Recife/PE um show, “Anti-nuclear”, onde voltam a se encontrar, além de conhecerem outras bandas. No ano seguinte, Jobson, Washington e Fumaça formam a banda “Disunidos”/JP, que participou de vários eventos e promoveu outros como as três versões dos shows “União de Forças” nos anos 89, 90 e 91.
Neste meio tempo estabeleciam contatos com pessoas de Campina Grande identificadas com a proposta e postura punk e formava-se, em 1988, a banda “C.U.S.P.E.”. O estilo era, no início, metal, passando logo para hardcore. A C.U.S.P.E. promoveu em 1991 um show aberto no coreto de uma praça central em Campina Grande. O show chamava-se “1º Anti-Nuclear”. Participaram as bandas “Disunidos”, “Discarga Violenta” e outra de Fortaleza. Conjugando reuniões de organização com shows procurava-se dar forma orgânica aos grupos anarco-punks. O “2º Anti-Nuclear”, no ano seguinte, não aconteceu a contento, pois não foi possível a realização do show.
Em Campina Grande, chegou a existir dois grupos, um denominando-se M.A.P., Movimento Anarco-Punk, e o outro “CARCARÁ”. Um e outro com cerca de 20 membros. O MAP promoveu grupos de estudo sobre o anarquismo, realizou e participou de manifestos e gig’s, chegando a adquirir um sítio nos arredores da cidade com o objetivo de realizar uma vivência cultural, produtiva e cotidiana de forma alternativa e autogestionária.
Em 1990 o núcleo pró-COB de João Pessoa alugou um espaço no centro da cidade para reuniões e promoção de eventos. Os punks tinham acesso a este espaço. Em 1992 o núcleo pró-COB, punks e entidades populares, culturais, ecológicas e outras invadiram, no centro da cidade, um antigo prédio abandonado pela prefeitura, passando a ocupá-lo e a utilizá-lo coletivamente. Os punks e os anarco-sindicalistas dividiam uma das salas do prédio da antiga escola Cilaio Ribeiro que no seu interior abrigava pequeno teatro. Com a auto-dissolução do núcleo pró-COB de João Pessoa/PB neste ano, o grupo punk ficou com o espaço da sala no prédio invadido.
Este foi um período de efervescência do movimento punk. Surgiram grupos e bandas.
Pipocaram zines de todos os lugares e houve uma energia que contagiou e seduziu muitos jovens. Uma banda feminina anarco-punk foi formada em 1993. Chamava-se “Aberração Sonora”, formada por Jael, Cira e Sheila.
Houve também a busca de criar uma organização coordenadora dos grupos anarquistas do norte e nordeste para ações convergentes. Assim surgiu o MANN, Movimento Anarquista do Norte e Nordeste. Foram quatro os encontros do MANN. O 1º em João Pessoa/PB em 1989. O 2º em Aracaju/SE em 1990. O 3º em Natal/RN em 1991 e o 4º em Belém/PA em 1992. Elaborou-se um manifesto do movimento. Procurava-se coordenar as ações e manifestos entre todos os grupos. Em 1993 o MANN se dissolveu e em Belém/PA fundou-se a LTOV, Liga de Trabalhadores de Ofícios Vários.
Os grupos de Natal/RN também promoviam, nesta época, eventos. O “Sub Consciente” foi um dos que marcou muito o início da trajetória do movimento punk no nordeste. O 1º realizou-se num ginásio escolar no bairro da Candelária. O 2º no bairro Cidade da Esperança. O 3º no bar “Vice e Versa”. O 4º no “Willi´s Bar”. No 1º tocaram as bandas “Devotos do ódio” e “SS 20” de Recife, “Karne Krua”, de Aracaju, “Disunidos” e “Desordem Armada”, de João Pessoa, “Discarga Violenta”, “Faces Crônicas” e “O.R.S.A.”, de Natal. Depois do 2º, os demais encontros foram definidos com bandas que zelavam pela postura política dos grupos. Música e idéia foram definitivamente conjugadas e assumidas enquanto a forma por excelência de vivência punk. A tal ponto se evidenciou o caráter político (não partidário) dos grupos e bandas que a idéia de música foi por muito tempo incisivamente combatida por muitos grupos e bandas. É a atitude “Anti-música”. Conceitos punks como anti-música, d.i.y. (do it yourself, do inglês, faça você mesmo), no profit (sem lucro) e outros muitas vezes são incompreendidos. Isto se deve ao fato da cultura punk ser uma cultura do choque, sendo necessário mente aberta para entender estes conceitos no contexto da vivência punk e não descolados da realidade em que são cunhados.
Atualmente, o movimento anarco-punk no nordeste persiste na resistência. As bandas que permanecem na militância são: “Discarga Violenta” e “C.U.S.P.E.” Muitas outras surgiram neste período, como “Ruptura”, de Fortaleza/CE, “Plasma”, Aracaju/SE, “Inexistência Divina”, de João Pessoa/PB, “Derriba tus Muros”, de Recife/PE, entre outras e grupos como “Afim”, de Natal/RN, KRAP, de Recife/PE e o Coletivo Ruptura, de Fortaleza. Procuram construir um movimento com um nível de articulação interna satisfatória, uma sólida base organizacional, máxima estrutura econômica e forte inserção social. Estimulam afinidades com outros grupos e movimentos de cunho social e popular como o movimento homossexual, dos sem-terra, artísticos, musicais entre outros.
Investe-se atualmente na solidificação das bases de uma federação entre grupos anarco-punks dos Estados da Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Sergipe e Ceará por conta da proximidade geográfica e da afinidade entre as pessoas. Há outros grupos na Bahia, em Alagoas, em São Luís/MA e em Belém/PA, entretanto, o principal obstáculo à aproximação e colaboração com estes grupos é a enorme distância.
Com a criação de cooperativas de produção, de bandas e de estudos, o movimento tem procurado dar corpo aos grupos locais apontando para o fortalecimento coletivo dos grupos. Ações coletivas, planejamentos, experiências, projetos, avaliações e estratégias traçadas no coletivo e trocadas nos encontros periódicos têm sido a dinâmica mobilizadora dos grupos anarco-punks no nordeste. Este é um esforço para manter os ideais anarquistas como orientação da vivência individual e coletiva, numa atitude de afronta ao modelo autoritário da sociedade atual. Buscando estabelecer uma vivência libertária e solidária, construindo a partir da ruptura com os esquemas velhos e vencidos, as teias da nova sociabilidade. Como bem aconselhava Proudhon: “DESTRUAM ET AEDIFICABO”.
* Rogério H.Z. Nascimento é professor da UFPB e membro da banda C.U.S.P.E.