“Brancos de estimação e o racismo em pele de empatia” por Aline Dias

Brancos de estimação e o racismo em pele de empatia

por Aline Dias

Nós negras da diáspora fomos largadas para sobreviver num mundo cheio de contradições e de ódio. Nós somos ensinadas a ter gratidão, empatia e amor pelos nossos opressores. Afinal, se a gente fingir que não vê, ouve ou entende todo o ódio que eles nos lançam, como vamos sobreviver se o mundo é deles? A tática de sobrevivência acaba sendo sofrer quieta, relevar e diminuir a importância do ódio lançado contra nós e assim vamos vivendo, até o dia em que chega até nós aquela pessoa branca que por algum motivo mágico não nos odeia. A vontade de ter um mundo onde a igualdade racial é a norma é tão grande que nós acolhemos aquela pessoa branca como se ela fosse da família, ensinamos tudo sobre nós e nossos ancestrais na esperança de que ela vá e leve pro mundo branco todas estas informações valiosas, e principalmente, que ela vá e ensine os outros brancos que nós somos pessoas tão interessantes quanto eles, tão complexos e tão legais quanto eles.  Esse processo de aproximação para troca de saberes, é com certeza uma maneira muito importante de destruir preconceitos. Eu sinceramente acredito que conhecer para não discriminar é parte de um processo importantíssimo que nos levará á igualdade racial. O problema é quando nós ficamos inebriadas com a esperança de estar plantando uma semente boa pra sociedade, e baixamos a guarda esquecendo que o pessoal é politico, e consequentemente deixamos de analisar nossas relações pessoais criando cobras que só estão aguardando a hora certa pra nos picar.

 

O branco de estimação aproveita todas as regalias sociais de ser branco, e faz questão de continuar fazendo seu papel de colonizador quando usa uma das armas mais antigas, criadas por ele mesmo pra nos confundir, a mestiçagem. A mestiçagem combinada com um discurso de fluidez de raça, tem tentado com alguns sucessos transformar a negritude num sentimento, e não uma realidade material que elimina pessoas de pele não branca com traços negróides. Mesmo os livros de história mais antigos, mais mal escritos nós podemos ler sobre pessoas brancas se aproximando, se mostrando amistosas e em seguida saqueando tudo o que lhes interessa. Eles se aproximam, fazem seus estudos e em seguida nos abandonam. Eu tenho certeza absoluta que todas nós temos mais de um exemplo sobre essa relação que se torna cada dia mais complexa, mas que ainda preserva mecanismos iniciais de conquista e controle étnico. Eu sei que estamos vivendo um momento onde a biologia esta sendo ignorada por convenção de algumas bandeiras, mas nós não podemos cair na armadilha cultural que vincula a negritude somente á vestimentas e outros traços culturais. Nós ainda somos violentadas e mortas por causa do nosso fenótipo, por causa da cor da nossa pele e da textura dos nossos cabelos. Se para uma parcela mínima de pessoas brancas, é possível flutuar para viver, pra nós flutuar é permitir que assinem nossa sentença de morte, outra vez. O professor Kabengele Munanga diz que o racismo no Brasil é uma obra de engenharia, e não é por acaso que essa obra arquitetada a tanto tempo ainda é importante pra manutenção de um mundo de exclusão. Nós não podemos nos perder nos discursos modernos que parecem ser libertadores, esses discursos parecem um sonho onde tem uma pessoa sorridente te estendendo as mãos e dizendo : ” vem que será tudo lindo”, mas se segurarmos essa mão, vamos retroceder. Nós estamos num momento fértil de conquistas, estamos nos levantando e conseguindo representações onde não conseguíamos desde a década de 70, e estamos avançando em espaços nunca antes habitados por negros, como as universidades e com isso não podemos aderir ao discurso dos opressores. A luta do povo negro tem cor, fenótipo e origem africana, não há como se desprender disso, se alguém com outro fenótipo e cor se sente negro, essa pessoa precisa de um bom psicologo.

 

Quem são os brancos de estimação? O que comem e onde vivem? Branco de estimação é aquela pessoa de pele branca que convive com pessoas negras, e foi ensinada sobre tudo do mundo negro. Brancos de estimação podem ser nossos vizinhos, aquela amiga da faculdade ou do trabalho, a moça que grudou em você numa manifestação ou sua amiga de infância. Sabe aquele seu colega que comprou a biografia do Malcolm X  antes de você, leu e decorou tudinho, depois fica postando incansavelmente sobre o Malcolm e os acontecimentos da época, fica te perguntando coisas só pra você dizer ” eu não sei” e então esse amigo branco te aconselhar: Você precisa saber mais sobre seu povo ( ou qualquer coisa do tipo), e se você reclama ele logo foge e diz: ” ah mas fulano (outro amigo negro), não acha ruim ( logo, o problema é com você). Então, esse branco provavelmente é o branco de estimação de alguém, e cuidado esse tipo adora namorar pessoas negras, vivem tecendo elogios loucos pra poder namorar uma pessoa negra e então poder dizer ” mas minha namorada é negra…”

 

Estas pessoas conhecem nossas músicas, nossas danças, nosso jeito de fazer as coisas, os penteados, as roupas e é comum dizerem que “queriam ser negras”. Num primeiro momento pode ser bonito pensar: ” Ah, que bonito! A fulana é branca, mas queria ser negra! O racismo finalmente esta diminuindo!”. Cada dia que passa, a pessoa branca vai se informando, vai se enturmando e absorvendo tudo o que pode da nossa cultura, até o dia em que a partir da vivência dela, a pessoa vai acreditar que somos todos iguais, e que é exagero nosso falar sobre apropriação cultural no século XXI, e então, aquele branco que até então parecia nos compreender, respeitar e amar, resolve se auto declarar negro, naquela mesa de bar e todo mundo gargalha. Aquela pessoa branca que ouviu tudo o que você disse sobre sofrer por não ter o cabelo liso, começa a dizer que sofre muito porque seu cabelo enrolado não é aceito, e justifica esse sofrimento dizendo possuir uma alma negra. Essa pessoa branca te dá o ombro e ambas choram acreditando sofrer do mesmo mal, o racismo. A partir destas vivências pessoais, o branco de estimação vai ganhando força ideológica apoiada por alguns negros e começa a falar por negros, e se questionada sobre o lugar de fala, usará seu mentor negro pra dizer ” ah, uma amiga negra que me disse isso”, e assim o branco de estimação vai te usando pra conquistar os espaços negros. Nós negros lutamos, nos estamos a frente das nossas lutas, mas quando conseguimos algum espaço, logo uma pessoa branca cola em nós e já solta que tem um pé na cozinha. Porque será que está tão legal ser preto? Nós não devemos achar graça quando uma pessoa branca, mesmo que seja branco de estimação se diz negra porque permitir que esse discurso de auto identificação étnica seja reproduzido com o nosso aval, é ainda resquício do racismo que impede o enfrentamento completo desse problema. Quando uma pessoa branca tem nosso aval pra ficar brincando de negritude só porque não esta mais achando tão legal assim ser branca, nós estamos criando um branco de estimação e alimentando uma cobra a conta gotas com a história dos nossos ancestrais. Entendam, um dos passos importantes para a igualdade racial, é os opressores reconhecerem os crimes que cometem, reconhecerem seus privilégios étnicos e não criar uma falsa simetria performando negritude. Não se esqueçam, tentam durante séculos nos matar, nós como resistência, acreditamos que se fossemos mais parecidos com eles o racismo diminuiria, pra isso nós alisamos nossos cabelos, abandonamos as religiões de matrizes africanas e apagamos muitas coisas importantes pra nós. Nós fomos de coração aberto tentar entender o mundo deles, mesmo que isso custasse nossos cabelos queimados e nossa auto estima ferida. Eles riram de nós, disseram que nunca seriamos brancos, e continuaram nos tratando mal. Essa assimilação não foi saudável nem pra nós e nem pra eles. As diferenças são saudáveis e nós (todos nós) precisamos aprender a lidar com ela e não tentar nos tornar o outro para respeitá-lo por completo. Por isso queridas, não criem brancos de estimação.