“A maneira mais simples de desobedecer ao mundo financeiro é recusar pagar as dívidas” – David Graeber

(Esta entrevista do antropólogo, economista, militante libertário e um dos elementos fundadores e integrantes do “Occupy Wall Street”, David Graeber, actualmente professor na London School of  Economics, foi publicada ontem no site de informação alternativa “Basta!”. O pretexto é o livro “Dívida: os primeiros 5.000 anos”, publicado em Julho passado, mas ainda não traduzido para português.)

David Graeber : “A maneira mais simples de desobedecer ao mundo financeiro é recusar pagar as dívidas”.

A dívida? Uma construção social, fundadora de um poder arbitrário, considera David Graeber, antropólogo e economista norte-americano, considerado pelo New York Times como um dos intelectuais mais influentes da actualidade. Os países pobres e as pessoas endividadas estão acorrentados aos sistemas de crédito. Estão presos a relações baseadas na violência, nas desigualdades e justificadas pela moral, descreve o autor num livro que traça 5.000 anos de história da dívida. “Reembolsar as dívidas” tornou-se um dogma, impossível de contestação. Mas se, apesar de tudo, decidissemos pôr as contas a zero? Com o movimento “Occupy Wall Street”, David Graeber promove acções de desobediência civil para demonstrar o absurdo do actual sistema capitalista. Entrevista.

Agnès Rousseaux

Fotos : CC A. Golden (Une) e CC Gonzalo

david_graeber-403b4Basta! : Em que momento da história apareceu o crédito? O que é uma dívida?

David Graeber: A dívida é uma promessa que foi pervertida pelos matemáticos e pela violência. Contaram-nos uma história: ” Era uma vez as pessoas usavam a troca. Vendo que não funcionava muito bem, criaram a moeda. E o dinheiro trouxe-nos o crédito”. Portanto, da troca ao crédito haveria uma espécie de linha a direito que nos conduziria à situação actual. Se olharmos a história com mais atenção, ela passou-se de forma muito diferente! O crédito foi criado primeiro. A moeda física apareceu alguns milhares de anos mais tarde. Isto permite colocar as perguntas de maneira diferente : como passámos de um sistema onde as pessoas diziam “devo -te uma vaca ” até  um sistema onde o valor exacto de uma dívida pode ser medido? Ou que se possa garantir, apoiados numa fórmula matemática, que “340 frangos são equivalentes a cinco vacas” ? Como é que uma promessa, uma obrigação de reembolso, se tornou numa “dívida”? Como é que a ideia de que devemos um favor foi quantificada?

Em que é que quantificar uma dívida é um problema ?

Quantificável, a dívida torna-se fria, impessoal e sobretudo transferível: a identidade do credor não tem qualquer importância . Se eu prometer encontrá-la amanhã às cinco horas, você não pode dar essa promessa a qualquer outra pessoa. Como a dívida é impessoal, porque pode ser exigida através de mecanismos impessoais, pode ser transferida para outra pessoa. Sem esses mecanismos, a dívida é qualquer coisa de muito diferente. É uma promessa baseada na confiança. E uma promessa, não é a negação da liberdade, pelo contrário, é a essência da liberdade ! Ser livre é precisamente ter a capacidade de fazer promessas. Os escravos não as podem fazer, não podem criar compromissos em relação a outras pessoas, porque não têm certeza de as poderem cumprir. Ser livre significa ser capaz de se comprometer com o outro.

Em vez disso, o ” reembolso da dívida ” tornou-se um dogma moral…

A dívida converteu-se numa questão de aritmética impessoal, ao nível da própria obrigação moral. É este processo que é preciso desfazer. É também fascinante ver os laços entre o conceito de dívida e o vocabulário religioso, para constatar como as principais religiões começam com a linguagem da dívida: a sua vida é uma dívida que deve a Deus. A Bíblia, por exemplo, começa com o resgate dos pecados … Transformada num dogma moral, a dívida justifica as mais terríveis dominações. Não se pode perceber o que ela hoje representa sem um desvio por esta longa história da dívida como justificação moral de relações de poder desiguais. A linguagem da dívida permite justificar uma relação arbitrária de poder. E é muito difícil argumentar com um poder arbitrário sem adoptar a mesma linguagem.

Você cita o exemplo da mafia…

Falar da dívida torna-se um meio para descrever relações desiguais. Os mafiosos compreenderam isso: utilizam o termo dívida, mesmo quando aquilo que fazem é na realidade extorsão. Quando anulam ou adiam certas dívidas, isso passa por generosidade! É como os exércitos que obrigam os vencidos a pagarem um tributo: uma taxa em troca de vidas poupadas. Com a linguagem da dívida, parece que as vítimas são os culpados . Em numerosas línguas, dívida , culpa e pecado são a mesma palavra ou têm a mesma raiz.

A moeda, que permite quantificar com precisão o valor de uma dívida aparece também em situações de violência potencial. O dinheiro nasceu também da necessidade de financiar guerras. A moeda foi inventada para permitir aos Estados pagarem exércitos profissionais. No Império Romano, a moeda aparece exactamente nos locais as legiões param. Da mesma forma, o actual sistema bancário foi criado para financiar a guerra. Violência e quantificação estão intimamente ligadas. E isso transforma as relações humanas: um sistema que reduz o mundo a números só pode ser mantido pela força .

Há também uma inversão : o credor parece ter-se tornado a vítima . A austeridade e sofrimento social são, então, considerados como um sacrifício necessário, ditado pela moral…

Absolutamente . Isso permite , por exemplo, entender o que está em jogo hoje na Europa. A Europa é uma comunidade de parceiros iguais? Ou há uma relação de poder entre entidades desiguais ? Tudo pode ser renegociado? Quando uma dívida é estabelecida entre iguais, ela ainda é tratada como uma promessa. Nós renegociáramos promessas a todo o momento, porque as situações mudam: ainda que prometa encontrar-me consigo amanhã às cinco horas, se a minha mãe morrer, não sou obrigado a manter a minha promessa.

Os ricos podem ser incrivelmente compreensivos relativamente à dívida dos outros ricos: os bancos norte-americanos Goldman Sachs e Lehman Brothers podem ser concorrentes, mas quando alguma coisa ameaça a posição geral da sua classe, frequentemente esquecem todas as dividas contraídas, se assim o quiserem. Foi o que se passou em 2008. Triliões de dólares de dívida desapareceram, porque isso convinha aos poderosos.

Da mesma forma, os pobres são também muito compreensivos uns com os outros. Os empréstimos que fizeram a familiares, acabam, no fim, muitas vezes, por serem oferecidos. Quando existem estruturas de desigualdade é que a dívida, de repente, se torna numa obrigação moral absoluta. A dívida para com os ricos é a única que é realmente “sagrada”. Porque é que Madagáscar está em dificuldades quando deve dinheiro aos Estados Unidos, mas quando são os Estados Unidos que devem dinheiro ao Japão é o Japão que está em dificuldades? O facto dos Estados Unidos terem um exército poderoso muda a relação de forças…

Hoje, tem-se a impressão que a dívida substituiu os direitos : os direitos à educação ou à habitação transformaram-se em direito ao crédito?

Alguns usam a casa para financiar a sua vida, contratando cada vez mais hipotecas. As suas casas transformam-se em caixas multibanco. Multiplicam os micro- créditos para fazer face às despesas do dia-a-dia, em substituição da segurança anteriormente dada pelo Estado-Providência , que dava garantias sociais e políticas. Hoje, o capitalismo não pode oferecer bons “negócios” a todos. Abandona-se a ideia que cada de nós poderia possuir um pedaço do capitalismo: nos Estados Unidos , cada pessoa era convidada a investir em empresas, que na verdade exploram cada um nós. Como se a liberdade consistisse em possuir uma parte da nossa própria exploração.

Depois, os banqueiros transformaram a dívida em produtos bancários, negociáveis como se fossem moeda ​​…

É incrível ! Há seis anos atrás, mesmo pessoas muito inteligentes, diziam: “Como são brilhantes, criaram dinheiro a partir do nada”. Ou, a maior parte das vezes, com algoritmos tão complexos que apenas os astrofísicos podiam compreendê-los. Mas esta incrível sofisticação veio a provar-se que era uma vigarice! Encontrei-me recentemente com diversos astrofísicos, que me disseram que estes números não querem dizer nada . Todo este trabalho parece muito sofisticado, mas, de facto, não o é. Um grupo de pessoas conseguiu convencer toda a gente de que eles eram os únicos que podiam compreender (o que estava a acontecer) . Eles mentiram e as pessoas acreditaram neles . De repente, uma parte da economia foi destruída e vimos que nem mesmo eles compreendiam os seus instrumentos financeiros.

Por que é que esta crise não mudou a nossa relação com a dívida?

Devido a um profundo défice intelectual. O seu trabalho ideológico foi tão eficaz que toda a gente está convencida de que o actual sistema económico é o único possível. Nós não sabemos fazer de forma diferente. Portanto, colocamos um pedaço de fita adesiva sobre o assunto, pretendendo que nada aconteceu. Onde é que isto vai nos levar? A um novo desastre. Para mais estamos agora a entrar numa nova etapa: a do jogo defensivo. Como a maior parte das justificações intelectuais do capitalismo estão a entrar em colapso , os seus promotores atacam agora todas as alternativas possíveis. Na Grã-Bretanha, depois da crise financeira, a primeira coisa que os responsáveis económicos quiseram fazer foi reformar o sistema de ensino para torná-lo mais competitivo. Na realidade , para o tornar mais semelhante  ao sistema financeiro! Por quê? Sem dúvida porque o ensino superior é um dos poucos espaços onde outras ideias, outros valores, podem surgir. Daí a necessidade de cortar pela base qualquer alternativa, ainda antes dela poder emergir. Contudo, este sistema de ensino funcionou muito bem até agora, enquanto que o sistema financeiro falhou de maneira espectacular. Seria, portanto, mais adequado tornar o sistema financeiro semelhante ao sistema de ensino e não o inverso!

Hoje nos Estados Unidos há pessoas que estão presas por serem incapazes de pagar as suas dívidas. Você cita o exemplo de um homem condenado à prisão em 2010, no Estado do Illinois, por um período indefinido, porque não conseguiu pagar 300 dólares…

Nos Estados Unidos há pessoas que estão presas porque não conseguiram pagar as taxas de justiça. Quando é quase impossível processar os bancos por execuções ilegais! Os bancos podem sempre ir à polícia e pedir-lhe que vos prenda por falta de pagamento, mesmo que todos saibam que se trata de uma acção ilegal. O poder financeiro e o poder político estão em vias de se fundirem. A polícia, cobradores de impostos, pessoas que vos expulsam das vossas casas, agem directamente no interesse das instituições financeiras. Independentemente dos vossos rendimentos, um robot dita a vossa expulsão e a polícia obriga-vos a sair das vossas casas.

Nos Estados Unidos todos acreditavam que  faziam parte da classe média . Esta  não é , na verdade, uma categoria económica , mas sim uma categoria social e política: pode-se considerar que fazem parte da classe média os cidadãos que se sentem mais seguros quando veêm um polícia, e não o contrário. E, por extensão, com todas as outras instituições, bancos, escolas… Hoje, menos de metade dos americanos consideram que fazem parte da classe média, contra três quartos há algum tempo atrás. Se é pobre, você supõe que o sistema está contra si. Se é rico, tende a acreditar que o sistema está consigo. Até este momento, nenhum banqueiro foi preso por actos ilícitos durante a crise financeira. E centenas de manifestantes foram presos por tentarem chamar a atenção para estes factos.

A Dívida provoca sempre contestação e desordem nas sociedades, escreve você. E que desde há 5.000 anos as insurreições populares começam muitas vezes pela destruição dos registos de dívida…

A dívida parece ser a mais poderosa das línguagens morais jamais criadas para justificar as desigualdades e torná-las “morais”. Mas quando tudo explode, é com uma grande intensidade! O historiador britânico Mouldy Finley defendia a tese de que, no mundo antigo, havia apenas uma exigência revolucionária : abolir as dívidas , e depois redistribuir as terras . Da descolonização da Índia à América Latina , os movimentos de abolição das dívidas parecem uma prioridade por todo o lado. Aquando das revoluções camponesas, uma das primeiras acções dos insurgentes é encontrar os registos de dívidas para os queimar. Logo de seguida os registos de propriedade das terras. O motivo? A dívida é pior do que se disser a alguém que ele é inferior, escravo, intocável. Porque isso significa : “Nós não somos fundamentalmente diferentes, você devia ser meu igual, mas celebrámos um contrato de negócio e você perdeu”. É uma falha moral. E isso pode causar ainda mais raiva. Há algo de profundamente insultuoso, degradante, com a dívida, que pode causar reacções muito violentas.

Você reivindica um jubileu, ou seja, um perdão das dívidas – dívidas soberanas dos Estados, mas também dívidas individuais. Que impacto económico teria isso hoje?

Deixo os detalhes técnicos aos economistas…  Isso supunha, nomeadamente, um regresso a um sistema público para as pensões de reforma. Os perdões anteriores de dívida nunca envolveram todas as dívidas.  Mas alguns tipos de dívida, como a dívida do consumo ou a dívida soberana dos Estados podiam ser anulados sem grandes efeitos sociais. A questão não é saber se o cancelamento da dívida vai ocorrer ou não: as pessoas que conhecem bem a situação admitem que isso vai, obviamente, acontecer. A Grécia, por exemplo, nunca poderá pagar a sua dívida soberana e ela será gradualmente anulada. Seja com a inflação – que é uma forma de limpar a dívida, mas que tem efeitos nocivos – seja por fomas de anulação directa. Será que isso acontecerá a partir  “de baixo”, sob a pressão dos movimentos sociais, ou “de cima” por acção dos dirigentes de maneira a tentar preservar o sistema? E como vão eles fazê-lo? É importante fazê-lo de forma explícita, e não através de uma simples alegação de “resgate” da dívida. A maneira mais fácil seria dizer que uma parte da dívida é impagável, que o Estado já não garante o pagamento, a cobrança dessa dívida. Já que, em grande medida, esta dívida apenas existe porque é garantida pelo Estado.

A anulação da dívida dos Estados significa a bancarrota.  Os especialistas do FMI ou do Banco Mundial vão alguma vez concordar com esta opção ?

O FMI está a cancelar actualmente as dívidas em África. Os peritos sabem que a situação actual não é sustentável. Estão conscientes de que, para preservar o capitalismo financeiro e a viabilidade a longo prazo do sistema, deve acontecer alguma coisa radical. Fiquei surpreendido ao ver que os relatórios do FMI têm referências ao meu livro. Mesmo no seio dessas instituições há pessoas que propõem soluções muito radicais.

O cancelamento da dívida significa a queda do capitalismo?

Não necessariamente. A anulação da dívida pode ser também uma forma de preservar o capitalismo. Mas, a longo prazo, estamos a ir em direcção a um sistema pós- capitalista. Isso pode parecer espantoso, uma vez que o capitalismo venceu a guerra ideológica e a maior parte das pessoas estão convencidas de que nada mais pode existir senão esta forma particular de capitalismo financeiro . No entanto, vai ser preciso inventar outra coisa, senão em 20 ou 30 anos, o planeta será inabitável. Eu penso que o capitalismo já não existirá daqui a 50 anos, mas temo que o que vem a seguir possa ser ainda pior. Temos que construir algo melhor.

No quadro do movimento Occupy Wall Street , você é um dos iniciadores da campanha “Rolling Jubilee” . Quais são os seus objectivos e o seu impacto?

É uma maneira de mostrar até que ponto este sistema é ridículo. Nos Estados Unidos, os “cobradores” compram a dívida , a 3% ou 5% do valor da dívida original, e depois vão tentar cobrar a totalidade do dinheiro através da cobrança às pessoas endividadas. Com a campanha “Rolling Jubilee” nós fazemos como aqueles cobradores de dívidas : nós mesmos compramos colectivamente a dívida – o que é perfeitamente legal – e então, em vez de exigir o reembolso , anulamos essas dívidas ! Quando chegarmos a um nível em que isto comece a ter um efeito real sobre a economia, sem dúvida que irão vão encontrar uma maneira de torná-lo ilegal. Mas, por enquanto , é uma boa maneira de pôr em evidência o absurdo do sistema ( nesta campanha , leia a nossa página ” Strike debt “ um resgate do povo pelo povo). Em complemento, desenvolvemos o manual de operação do projecto ” Drom ” (Debt resistors operation manual), que presta assessoria jurídica e prática para as pessoas endividadas.

A maneira mais simples de desobedecer ao mundo financeiro é recusar a pagar as dívidas. Para iniciar um movimento de desobediência civil contra o capitalismo podemos começar por aí. Mas as pessoas já o fazem! Um em cada sete americanos está a ser processado por um cobrador de dívidas. Pelo menos 20% dos empréstimos estudantis estão em situação de incumprimento. Se se adicionarem os empréstimos hipotecários de 80 % da população que está em dívida nos Estados Unidos , entre um quarto e um terço já estão em falta de pagamento! Milhões de americanos já estão a praticar a desobediência civil relativamente à dívida. O problema é que ninguém quer falar sobre isso. Ninguém sabe que toda a gente está a fazer isto! Como juntar todas essas pessoas isoladas? Como organizar um movimento social se toda a gente tem vergonha de não ser capaz de pagar as suas dívidas? De cada vez que você recusa pagar a dívida médica, uma dívida “odiosa” criada pelo conluio entre o governo e os meios financeiros – que torna as pessoas reféns de dívidas para as quais não há outra escolha, senão pagá-las – você pode gastar o seu dinheiro nalguma outra coisa socialmente importante. Nós queremos incentivar os “coming- out” nesta forma de resistência ao sistema. Federar este exército invisível de pessoas que fazem falta , que já estão no campo de batalha , opondo-se ao capitalismo através da resistência passiva.(Tradução Portal Anarquista)

Aqui: http://www.bastamag.net/David-Graeber-La-forme-la-plus

Ver também: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2014/01/08/sobre-o-fenomeno-dos-empregos-de-merda/

https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2013/01/20/novas-vozes-libertarias-david-graeber/

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