Entrevista com o anarquista Italo-espanhol Leo Bassi

Leo Bassi, nasceu em Nova York em 1952.Descendente de uma família de italianxs, franceses, austríacxs, britânicxs e poloneses que há seis gerações se dedicava às atividades circenses, com palhaçaria e números tradicionais como malabarismos e acrobacias. Leo Bassi iniciou no circo aos 7 anos atuando junto a seu pai. Durante o período que trabalhou no circo familiar, Leo Bassi trabalhava como antipodista (malabares com os pés).

Anarquista, aos 24 anos, abandonou o espetáculo familiar para desenvolver sua carreira solo como bufão. Seu trabalho caracteriza-se pelo estilo provocador com críticas diretas e provocadoras as formas de política hegemônicas e as tendências conservadoras impostas pelas igrejas. Por essa postura crítica sofreu diversas ameaças. A mais séria se deu em março de 2006 quando uma bomba foi colocada no teatro Sérgio Cardoso em Madri, um quilo de explosivos foram colocados a menos de dois metros do seu camarim, onde o espetáculo “Revelações”* era apresentado.

“Por um milagre”, como ele mesmo considera, ainda que ateu, um funcionário notou a presença do estranho objeto e o avisou, minutos antes da explosão. “Um grupo de fanáticos da extrema direita católica da Espanha iniciou uma guerra ilegítima com o uso de violência contra o público, ameaças de morte contra mim e, ao final, com a loucura de uma bomba, dois meses após a estreia da peça”, conta Leo Bassi.

“‘La Revelación’ é o espetáculo mais provocador e profundo de toda a minha vida. Considero-o muito importante, pois eu, como bufão, falo de coisas sérias. O palhaço tem dois aspectos: o primeiro é fazer rir. O segundo é propor uma reflexão sobre a condição humana, sobre a vida. Então falar de cosmologia, de Deus, da morte, das coisas mais essenciais do ser humano é um desafio que tem de ser aceito por todo palhaço.”

Os shows que Bassi produz e apresenta estão longe de serem leves e divertir o público de forma inocente. São incômodos, provocadores e os risos que eventualmente surgem são de nossos infortúnios. “Não gosto do teatro-museu, burguês. O teatro, para mim, é um local de experimentações, de comunicação, de expor o nosso não-conformismo.”. É claro que a recepção de seus espetáculos em cada país varia – e muito. E para melhor se adequar em cada um deles, Bassi procura se inteirar um pouco mais sobre as condições políticas e sociais locais lendo e conversando com o povo nas ruas.

Em seu repertório estão mais de 17 espetáculos teatrais, 11 programas televisivos, 4 filmes e 15 premiações.

Utilizando da arte para romper fronteiras onde teatro como uma poderosa ferramenta alcançando os espaços onde os discursos não atravessam e as mesas de debate não contemplam.
Como uma arma de longo alcance, para muito além do entretenimento, mesmo que esse seja necessário para se quebrar a rigidez da opressão e se fazer ouvir mesmo quando todxs estão cansadxs e tudo parece ter sido silenciado.

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*“Revelações” é um monólogo que nas palavras de Leo Bassi “Lo que molesta tanto las personas es la fuerza con la que defendo los valores del laicismo. La obra es basicamente una crítica al Monoteísmo del Antiguo Testamento que pone en sus contradicciones peligrosas, omisiones e inconsistências: el papel de la mujer subordinado al hombre, el miedo al sexo y el mistério del mandamento. ‘No matarás’”.

Entrevista com Leo Bassi:

Rô & Tatá: Primeiramente agradecemos a possibilidade da entrevista. Gostaríamos de começar essa conversa com você nos falando um pouquinho como teve contato com o anarquismo e o pensamento libertário em sua vida.

Leo Bassi: Agora mesmo acabamos um curso de quinze horas onde falei de uma tradição familiar de circo, de bufões, e onde continuamente se falava de uma liberdade individual,dizíamos que o valor mais alto da pessoa é não respeitar o poder ou as convenções, e ter somente ações em função do seu próprio ideal e ética. E isso nasceu como uma ideia desde minha infância que só mais tarde, com 30 ou 40 anos, comecei a ver que isso é compartilhado por todo movimento anarquista e que minha família não era politizada no sentido clássico do termo, mas era gente do circo com valores circenses e fui descobrir que pessoas como Durruti, na Espanha, e outros haviam articulado os mesmo valores e conceitos da ideia de uma realidade e liberdade anarquistas. Então descobri mais tarde em minha vida que eu era anarquista e fundamentalmente os bufões o são.

R & T.: E de que maneira você vê que o anarquismo pode contribuir para o mundo teatral e circense; e vice versa?

LB.: O grande inimigo da nossa época é o pensamento único de sistema piramidal de poder. E esse sistema de pensamento único e poder concentrado é consequência sempre mais da introdução das tecnologias de comunicação e dos domínios dessas tecnologias de comunicação por um pequeno grupo de poder; e esses inimigos sempre foram também os inimigos de todos os espetáculos independentes e da trajetória de ciclos de minha família, e da possibilidade de viver livremente, comunicar-se com seu público sem influência de grandes poderes. E então, o espírito de liberdade e libertário que as pessoas de circo sempre viveram é todavia mais importante hoje quando se trava uma luta contra o pensamento único nessa nova realidade que é a realidade desses novos meios de comunicação. Então em poucas palavras as antigas tradições de circo, tradições espirituais e os valores do circo são extremamente atuais e o desejo da comunicação livre é uma das principais lutas hoje em dia para sair do domínio econômico e político desses grupos de poder. Então, os valores clássicos dos palhaços sãos os mesmos que hoje em dia os Anônimos e os ativistas tem, os valores pelos quais lutam essa gente são os valores pelos quais nós palhaços havemos lutado. Também difundir nossos espetáculos ao público é o desejo e orgulho de rir-se do poder e ser independentes porque não somos somente nós (anarquistas), mas pessoas de circo também querem transmitir ao seu público da mesma maneira que ativistas hoje em dia tentam comunicar as noções democráticas para o povo, a ideia de defender seus direitos e de lutar contra o poder. Então creio que a luta ancestral dos bufões é muito parecida com as lutas políticas de hoje e os inimigos são os mesmos.

R & T.: No Brasil vemos muitos artistas, tanto no circo quanto no âmbito do teatro que são pouco interessados ou vinculados às problemáticas sociais, fazendo um pouco da arte deles quase sem nenhum questionamento à lógica hegemônica. Gostaríamos que você comentasse um pouco sobre esse distanciamento e se você enxerga isso na Itália ou na Espanha.

LB.: Esse é um problema na Espanha e na Itália também, e o problema é extremamente claro! Como sempre a maioria do trabalho, dos artistas, atores, cômicos e todos, dependem do dinheiro dos centros de poder, há um medo de tomar posições contrárias ao poder e o medo não é paranoia, é real, porque esse poder sabe muito bem quão frágil podemos ser, podendo nos deixar sem trabalho, eu mesmo continuamente me encontro boicotado e perco trabalho por minhas posições políticas, mas eu pude durante os anos, ter um público fiel e internacional e me permite o luxo de poder falar mal do poder econômico e não me encontro na situação de outros artistas que têm contato com só um centro de poder, como a Globo aqui, e então se perdem o contrato e morrem de fome. Eu tenho centros de contatos com muitos níveis diferentes, como muitos países e esse trabalho horizontal que tive de manter, como contatos e apoios políticos, me permitem poder “mandar a merda” ao “canal plus” (grande emissora televisiva europeia)e coisas que são grandes, poderes de meios televisivos e não morrer de fome. Há também uma outra dimensão que não é só uma censura econômica, mas os artistas também têm medo de perder contato com o público, com a ideia que estes em geral perderam sua consciência social, sua consciência política, estão tão manipulado pelos grandes meios que já não têm um pensamento crítico, e podem ser inclusive que pensem que um artista que diz coisas políticas lhe dá medo, não lhe interessa, não querem problemas (e estou falando agora do público). Temos que pensar também que muita gente da Europa, e creio que também do Brasil, trabalham muito por pouco dinheiro, estão muito cansados ao final do dia e quando chegam em suas casas a única coisa que fazem é se colocar em frente à televisão e poder descansar, e não pensar ou ter opiniões políticas que finalmente o pensamento político é um luxo das pessoas que podem ter o tempo de pensar. Mas apesar dessa reflexão eu sei também que o público popular pode ser interessado em política, e ter fome em certa, maneira de fazê-lo, então tento a minha maneira de não perder o contato com o público popular e ficar só num grupo de artista militantes.

R & T.: Aqui no Brasil, tivemos a criação dos teatros operários no início do seculo XX, com a vinda dos italianos com visões anarquistas, o que ajudou muito na criação de um movimento anarquista forte nesta época. Por que muitos anarquistas não usam mais da arte? Porque poucos anarquistas são bufões ou trabalham com teatro “atravessador”. Ou talvez nós conheçamos poucos…

LB.: Desde sempre um dos grandes erros da anarquia era de transformar-se em seita, em encerrar-se em si mesmo e não assumir o anarquismo como uma mensagem popular, humanista e aberta a todos. Então é um pouco esta ideia maniqueísta que há os bons e os maus, e que a sociedade é má e que nós somos bons, esse desejo de pureza que se entende porque o mundo do poder econômico é muito duro e muito forte então se entende esse desejo de lutar inserindo-se,mas as vezes noto na anarquia um desprezo pela “gente popular”, e você não pode ir a nenhuma parte se você pensa que os outros são estúpidos, da mesma maneira que o palhaço não pode fazer o público rir se pensa que o público é estúpido. O público é muito manipulado e o poder manipulador é muito profundo e muito forte. É fácil ser manipulado, então eu desculpo o povo por ser manipulado porque o poder tem muitas maneiras de manipular as pessoas. De outro lado também, o público “normal” só aprende porque entende muito mais de política do que parece, e as vezes os anarquistas são encerrados em uma semântica sua de que as pessoas “normais” não entendem, um modo de considerar o mundo um pouco exclusivos e com isso pode ser que desdenhem ou não considerem a força de uma arte popular ou do teatro popular. Essa é para mim uma luta contínua, essa de outras pessoas que consideram ter a única verdade possível e que os demais estão equivocados, mas na minha idade vivo essas contradições com filosofia e sigo tendo muitos amigos anarquistas apesar das minhas críticas. (riso)

R & T.: Sabemos que o sexismo, a homofobia, são problemáticas que são reproduzidas em vários âmbitos da vida. Gostaríamos que você comentasse sobre o machismo e a homofobia dentro do mundo do circo e das artes em geral.

LB: No mundo do circo, havia como famílias aristocráticas, famílias de circo que hão perpetuado desde gerações e gerações e gerações, e neste mundo de circo profundo, de circo antigo eu não me recordo de homofobia. Em um circo decadente, em um circo comercial sim, como no resto da sociedade, mas eu me recordo perfeitamente de criança que meus pais sabiam muito bem da presença de homossexuais e de lésbicas no circo e se comentava isso, mas havia uma honra e um respeito pela diversidade e meus pais sempre me haviam apresentado isso como algo enriquecedor, de ter pluralismo sexual e não ter essa ideia convencional de que “isso tem que ser assim” e que “tem-se que viver dessa maneira e os outros são maus”. Então dessa mesma maneira que no circo, minha família era muito orgulhosa em pensar quepessoas de diversas raças e etnias poderiam trabalhar juntas no circo e que não havia racismo. Era visto por minha família como símbolo de humanismo do circo, e foram valores que me foram transmitidos, então um valor antirracista e outro valor antimachista. Claro que também se conheciam pessoas no mundo do circo que como no resto da sociedade era muito convencional e machista, mas esses não eram considerados como fundamentais e sim como estúpidos, marginais (risos), e que a alma do circo era inclusiva e vivia com orgulho a liberdade ali dentro e fora do circo as pessoas eram “convencionais”, mas dentro do circo não éramos convencionais. Da mesma maneira que não havia presença religiosa dentro do circo, de vez em quando alguns tentavam fazer, por exemplo, missas no circo, em algumas formas de circo, mas eram minorias, a tradição de minha família era que seu eu queria ser religioso bem mas não no circo, “ser religioso pode mas não no circo, vá lá fora e nas igrejas se quiser”, mas eu nunca fui na igreja e minha família também. Se celebravam as coisas e até os casamentos no circo, alguns depois até iam na igreja (risos), mas era considerado algo estranho para nós, ser religioso era considerado estranho à tradição humanista e laica do circo.

R & T.: Para encerrar, gostaríamos de um conselho para as anarquistas que acreditam e pensam a arte como uma ferramenta e como utilizá-la.

LB.: Pensar que suas lutas são muito importantes e que não é paranoia de pensar que é uma luta anarquista, pois a luta anarquista é essencial para a nossa sociedade e toca os valores mais profundos para uma democracia diferente frente aos poderes hegemônicos. Então, um é não ter medo de lutar por seus ideias anarquistas e dois é ser inteligentes e não viver a luta libertária anarquista com em um pequeno clube privado, mas que temos que pensar em abri-lo, em alargá-lo e também organizar-se porque finalmente por muito o mundo dos anarquistas que eu conheço hão ficado em um memória histórica, quando ao contrário, por exemplo as lutas por outra forma de copyright de direitos de autores como Graeber e outras coisas. Para mim, estas são lutas puramente anárquicas, como pelo acesso livre à informação na internet, ou como pessoas como Snowden ou Juliana Sange, esses para mim são imagens atuais de verdadeiros anarquistas. Muitas vezes, a luta anarquista se transforma em seita, o que eu vejo como uma debilidade, como um medo do povo, e não devemos ter medo de gente. Contra-atacar as ideias anarquistas é muito válido, mas é um problema de linguagem e o teatro pode ser uma boa linguagem. Encontrar uma linguagem atual que fale às pessoas normais e não aos já “convertidos” e isso é uma luta extremamente urgente e muito moderna.